Português forense : língua portuguesa para curso de direito / João Bosco Medeiros, Carolina Tomasi. – 8. ed. – São Paulo: Atlas, 2016, p. 11-14:
"Considerando a língua em sua imanência, ela foi estudada particularmente no passado em sua realidade estrutural. Entendia-se, sob a variação constitutiva de uma língua, que havia uma unidade sistêmica. Como a linguística estrutural nasceu em solo europeu, ela reproduziu a concepção de língua que aí existia, em que se identificava a língua com a norma-padrão. Faraco (2008, p. 33) afirma que a língua tornou-se “assunto de Estado nos países europeus, que, como parte do processo de centralização característico daquela conjuntura histórica, desenvolveram políticas linguísticas homogeneizantes em seus territórios”. Daí advém a dificuldade da linguística em admitir em seus modelos teóricos a heterogeneidade que é característica de qualquer língua. Assim, enquanto a linguística segue o pressuposto teórico de língua homogênea, a outras disciplinas cabe o estudo da heterogeneidade, como a dialetologia, a sociolinguística, a linguística histórica.
Saussure, com sua divisão entre langue e parole, entendia
que língua é um sistema social uniforme que se materializa em usos
individuais. Essa concepção
sistêmica mostrou-se produtiva
nos estudos fonológicos, mas insuficiente para a explicação da variabilidade linguística supraindividual.
Caracteriza-se a FALA, na
concepção de Saussure, como a atualização da língua pelo indivíduo. O uso individual é resultado da
necessidade de comunicação. Em virtude de sua realização oral ocorrer sobretudo em situações
informais em que normalmente não se pratica a norma-padrão (a língua modelar, abstrata),
a LÍNGUA FALADA é mais dinâmica que a ESCRITA. A ausência de censura favorece o surgimento de uma variedade rica em possibilidades expressivas.
A FALA é anterior à escrita,
mas, ao longo dos tempos, tem sido relegada a uma condição de inferioridade por causa das circunstâncias modernas
em que informações e documentos escritos
constituem o mundo
das relações humanas
e de produção.
As alterações que ocorrem na fala podem vir a tornar-se uso,
desde que sejam experimentadas por um grupo de indivíduos. Ensina Saussure (1977, p. 196)
que “nada entra na língua sem ter sido antes
experimentado na fala, e todos os fenômenos
evolutivos têm sua raiz na esfera do indivíduo”.
Segundo o pensamento saussuriano, as características
diferenciadoras entre LÍNGUA e FALA são: a língua
é sistemática, tem certa regularidade, é potencial, coletiva; a fala é
assistemática, nela se observa certa variedade, é concreta, real, individual.
Para Oliveira (2011, p. 32), a
forma como se vê a língua determina a maneira de ensinar português. Algumas
teorias polarizam as discussões desde a segunda
metade do século XX: a concepção
estruturalista, representada por Ferdinand de Saussure, Leonard
Bloomfield, Charles Fries, Noam Chomsky. O estruturalismo entende que “a língua é um sistema formado
por estruturas gramaticais inter- relacionadas”. Esse conceito
de língua é problemático porque
exclui o uso linguístico, o sujeito usuário
da língua e as variações linguísticas que sujeitos
diferentes produzem.
Saussure não tratou da fala em
sua pesquisa linguística porque entendia que a parte social e homogênea da língua seria o elemento que
daria cientificidade à linguística. Chomsky, por sua vez, ocupou-se de dois conceitos: o de competência (conhecimento que o falante possui de sua língua) e o de desempenho (uso efetivo da língua). Também excluiu de sua pesquisa o desempenho,
por entender que o uso da língua, que
conta com a influência de fatores psicológicos e físicos, como cansaço,
irritação, sono, não reflete sua
competência. Fundamentou sua pesquisa em um falante ideal que vive em uma
comunidade linguística homogênea.
Saussure compreendia a língua como um código e um sistema de
signos, o que o levava a interessar-se apenas pelo sistema e pela forma, e não por sua realização na fala nem por seu funcionamento em textos.
A visão funcionalista da linguagem tem como
representantes: Nikolai Trubetzkoy, Robman Jakobson, John Firth, Halliday,
autores que se ocuparam
sobretudo com aspectos funcionais, situacionais, contextuais e comunicacionais no uso da língua, e não apenas com o sistema.
A concepção de língua sociointeracionista ou interacionista entende a língua como meio de interação sociocultural e compreende elementos como: sujeito que fala ou escreve, sujeito que ouve ou lê, especificidades culturais desses sujeitos, contexto de produção e recepção do texto, elementos que não fazem parte do conceito estruturalista de língua.
Segundo a concepção pragmática, não bastam conhecimentos estruturais da língua, regras gramaticais, para o uso competente da língua. Dell Hymes seria o autor do conceito de competência comunicativa,
segundo o qual o falante-ouvinte, para ser competente em sua língua, precisa não apenas ter conhecimento das regras gramaticais, mas também a habilidade de usar essas regras, adequando-as às situações sociais em que se encontra no momento em que usa a língua (OLIVEIRA, 2011, p. 35).
Para Marcuschi (2011, p. 19 s),
o contexto atual dos estudos de linguística enunciativa vê a “língua como um conjunto de
práticas enunciativas e não como forma descarnada”. Toda e qualquer enunciação humana é organizada fora do indivíduo, é
sempre um ato social. A substância constitutiva da língua não é um sistema abstrato de formas linguísticas, nem uma enunciação individual isolada, mas um
fenômeno social de interação verbal realizado por meio de
enunciações, em que a realidade da língua se manifesta na interação verbal. Marcuschi
chama ainda a atenção para o que afirmam Bakhtin e Voloshinov, em Marxismo
e filosofia da linguagem (1997,
p. 124):
A língua
vive e evolui historicamente na comunicação verbal concreta, não no sistema
linguístico abstrato das formas da língua nem no psiquismo
individual dos falantes.
Bakhtin entende que fala (os
enunciados) não é ato individual, mas sempre um ato social. Se fosse individual, a compreensão seria impossível.
A noção de dialogismo seria o
princípio fundador da linguagem, visto que todo enunciado é um enunciado de alguém
para outra pessoa. E conclui Marcuschi à página 21: pensar a língua como
interação “retira a reflexão sobre a língua do campo da estrutura para situá-la no
campo do discurso em seu contexto sociointerativo”. Essa concepção de linguagem
como atividade social e interativa tem consequências relevantes para a visão do texto como unidade de interação, para entender a compreensão como atividade de construção do
sentido promovida por um eu situado em relação com um tu igualmente situado,
ambos mediados pela noção de gênero
textual (ver Capítulo 12), que é uma forma de ação social. Não é, pois, a língua uma entidade linguística apenas formalmente constituída.
Essa concepção, no entanto,
não nos deve levar a entender a linguagem
como resultado de determinismos externos, assim como não é estrutura tão somente: ela é vista pelos
interacionistas como forma de ação.
Daí Marcuschi (2011, p. 22) afirmar que o uso e o funcionamento da
linguagem dão-se “em textos e discursos produzidos e recebidos em situações enunciativas ligadas a domínios
discursivos da vida cotidiana e realizados
em gêneros que circulam na sociedade”. E, adiante, enfatiza: “não existe um uso significativo da língua fora
das inter-relações pessoais e sociais situadas”. Assim, o uso autêntico
da língua ocorre em textos realizados por sujeitos históricos e sociais “de
carne e osso”, que apresentam alguma
relação entre si e tenham
algum um objetivo comum.
Outros estudiosos que introduziram o uso em suas pesquisas
linguísticas foram: William Labov, que se ocupou da sociolinguística, John Austin e John Searle, que se dedicaram aos atos de fala,
Robert-Alain de Beaugrande e
Wolfang Dressler, que contribuíram decisivamente para os estudos da produção
textual e da leitura como atividades
de interação sociocultural.
Koch (2002, p. 14) entende que à
concepção de língua como estrutura “corresponde a de sujeito determinado, assujeitado pelo sistema, caracterizado por uma espécie
de ‘não consciência’”.
Em relação
ao sujeito, teríamos
de considerar as seguintes posições:
Os
sujeitos são vistos como atores/construtores sociais, o texto passa a ser
considerado o próprio lugar da interação e os
interlocutores, como sujeitos ativos que – dialogicamente – nele se constroem e são construídos.
Essa concepção de língua, de texto e de sujeito rejeita o
entendimento de que a compreensão é simples decodificação
de uma mensagem codificada por um emissor. A compreensão é uma atividade
interativa complexa, realizada com base em elementos linguísticos da superfície do
texto, mas que implica a mobilização de um conjunto
amplo de saberes (conhecimento de mundo, conhecimento enciclopédico)".