Português forense : língua portuguesa para curso de direito / João Bosco Medeiros, Carolina Tomasi. – 8. ed. – São Paulo: Atlas, 2016, p. 29-30:
"Outra classificação de variedades linguísticas é de Stella Maris Bortoni-Ricardo, que vê a diversidade do português brasileiro distribuída em três continua: 1.Continuum rural-urbano. 2.Continuum de oralidade e letramento. 3.Continuum de monitoração estilística.
Bortoni-Ricardo
e Rosário
Rocha (In: MARTINS; VIEIRA; TAVARES, 2014, p. 38) afirmam que o contínuo
de urbanização “estende-se desde as variedades rurais
geograficamente isoladas até a variedade
urbana suprarregional, que passou pelos processos históricos de padronização”.
Segundo as autoras citadas, nesse contínuo pode-se situar “qualquer falante em função de seus antecedentes, de sua história
social e de sua rede de relacionamentos”. Em relação ao contínuo de
oralidade e letramento, asseveram que o foco deixa de ser o falante
para apoiar-se em práticas sociais, orais ou letradas: “consideram-se aí a diversidade cultural
de produção e a implementação dessas práticas. Considerando o contínuo de monitoração estilística, alegam que por ele “podemos aferir a dimensão
sociocognitiva do processo
interacional, em particular o grau de atenção e de planejamento que o falante
confere à situação de fala”. O grau
de planejamento relaciona-se com: acomodação do falante ao interlocutor, apoio no contexto
para a produção dos enunciados, complexidade cognitiva que a produção
linguística envolve e familiaridade do falante com o objeto
da comunicação.
Esses contínuos permitem reconhecer as características das variedades menos prestigiadas às mais prestigiadas. Por exemplo: considerando o contínuo de urbanização, verifica-se que os usuários da língua da zona rural apresentam características de traços fonéticos/fonológicos, como a ausência da palatal lateral [λ]:velho dizem véiu, filho dizem fiiu (ou em transcrição fonética: [vɛyyw], [fiyu]. O que se verifica aí é a existência de um traço descontínuo, estigmatizado (na seção 6.4, tratamos do conceito de traços graduais e traços descontínuos).
Considerando variáveis graduais e descontínuas no português do Brasil, salientam Bortoni-Ricardo e Rocha (In: MARTINS; VIEIR; TAVARES, 2014, p. 41):
1. Tendência à redução das palavras proparoxítonas: “xícara” > “xicra” (variável gradual)’; “bêbado”> “bebu”.
2. Supressão do /S/, morfema de plural, nos casos de redundância de marca: os livros = os livro; essa tendência é maior entre os falantes da zona rural e “no repertório dos falantes não escolarizados do que nas variedades urbanas, em eventos de letramento” (p. 42).
3. Monotongação de ditongos decrescentes “outro” > “otro”, “peixe” > “pexe” (traço gradual: “alguns ditongos em certos ambientes linguísticos são quase categoricamente reduzidos até em estilos formais da língua padrão urbana”, p. 42); (4) o apagamento de /S/ da primeira pessoa do plural de verbos [-mos] é um traço que parece ser gradual: “fazemus” > “fazemu>.
4. Nos advérbios e nomes terminados em /S/ (um traço descontínuo característicos do polo rural e periferia das grandes cidades, as chamadas áreas rurbanas), temos: “ônibus” > “ônibu”, “menos” > “meno”.
Borgoni-Ricardo e Rocha consideram no polo rural do contínuo e áreas rurbanas:
1. Neutralização das líquidas /l/ e /r/: “almoço” > “armoço”, “bloco” > “broco”.
2. Vocalização da lateral palatal /λ/: para joelho temos as seguintes realizações fonéticas: [ʒu'ey] > [ʒu'ejy] > [ʒu'ejjy] > [ʒuej].
3. Mudanças esporádicas das vogais: “direito” > “dereito”; “raiva” > “reiva”;
4. Prótese de um /a/ em palavras iniciadas com consonante, como em: “lembrar” > “alembrar”.
5. Supressão de um fonema ou de uma sílaba (aférese) no início de uma palavra: “espera” > “pera”; “José” > “Zé”; “você” > “ocê”, “cê”; “aguentar” > “guentar”;
6. Nasalização de vogais em início de sílabas: “cozinha” > “conzinha”.
7. Metátese do /r/ e, mais raramente do /s/: “preocupa” > “percrupa”, “porquê” > “pruquê”, “satisfeito” > sastifeito”.
A esses fenômenos, as autoras ainda lembram que devem ser acrescidos os casos de hipercorreção, como “privilégio” > “previlejo”, “bandejão” > “bandeijão”
No contínuo oralidade-letramento, é possível verificar em textos escritos, dependendo de quem o escreva, a presença de marcas da oralidade (suponhamos: uma pessoa de pouco domínio das convenções ortográficas pode escrever pexe, amexa etc.).
No contínuo de monitoração estilística, pode-se observar se um texto seguiu ou não determinadas formalidades, ou condições de produção, como: contexto enunciativo, intencionalidade, interlocutores. Um estilo mais monitorado tende a aproximar-se do extremo direito do contínuo de urbanização, entrecruzando-se com o extremo direito do contínuo de oralidade-letramento.
Para Cyranka, em “O contínuo rural-urbano na pedagogia da variação linguística”, a variedade “culta” é resultado do “entrecruzamento no extremo direito desses três contínuos”."
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