sexta-feira, 8 de abril de 2022

Preconceito e intolerância linguística

 

Português forense : língua portuguesa para curso de direito / João Bosco Medeiros, Carolina Tomasi.  8. ed.  São Paulo : Atlas, 2016, p. 36-38:

"Quando se fala em preconceito, imediatamente nos lembramos do preconceito contra cor de pele, do preconceito contra religiões, do preconceito contra homossexuais e outros, mas raramente nos damos conta de que o preconceito linguístico é tão maléfico quanto qualquer outro. Para Leite (2008, p. 13), a intolerância linguística parece nem existir, passa quase despercebida pela opinião pública:

Contudo, a intolerância linguística existe e é tão agressiva quanto outra qualquer, pois atinge o cerne das individualidades. A linguagem é o que o homem tem de mais íntimo e o que representa a sua subjetividade. Não é exagero, portanto, dizer que uma crítica à linguagem do outro é uma arma que fere tanto quanto todas as armas.

Preconceito e intolerância linguística são comportamentos desrespeitosos de um falante diante da linguagem do outro. Como cidadãos, precisamos tomar consciência desse tipo de preconceito, para exercer uma atuação crítica sempre que nos depararmos com a ocorrência de tais fenômenos e contribuir para que manifestações de preconceitos e intolerância linguística não ocorram. Leite (2008, p. 14) entende que essa atitude “faz parte da formação integral do cidadão, pois é também indicativo de respeito pelas diferenças do outro”. A linguagem não é um fenômeno homogêneo, antes, pelo contrário, é um fenômeno multiforme e heteróclito, que é diverso de usuário para usuário. Os preconceituosos, no entanto, entendem que ela deva ser homogênea e, por isso, não toleram a diversidade e exigem o respeito a padrões uniformizadores.

Se examinarmos a fundo o preconceito e a intolerância linguística, verificaremos tratar-se, antes, de violência contra pessoas, que, em geral, imigraram de outras regiões, vivem nas periferias das cidades, ocupam postos de trabalho desvalorizados socialmente, não tiveram oportunidade de frequentar a escola. Daí os críticos da linguagem alheia se apoiarem nas realizações linguísticas, que pertencem a outras variedades prestigiadas, para atacarem, depreciarem, diminuírem e humilharem pessoas. Intolerância, portanto, sobretudo com relação a diferenças.

Em seu livro Preconceito e intolerância linguística, Leite (2008, p. 24-25) estabelece a diferença entre preconceito e intolerância: enquanto o preconceito seria uma discriminação silenciosa, a intolerância seria ruidosa:

O preconceito é a discriminação silenciosa e sorrateira que o indivíduo pode ter em relação à linguagem do outro: é um não gostar, um achar-feio ou achar-errado um uso (ou uma língua), sem a discussão do contrário, daquilo que poderia configurar o que viesse a ser o bonito ou o correto. É um não gostar sem ação discursiva clara sobre o fato rejeitado. A intolerância, ao contrário, é ruidosa explícita, porque, necessariamente, se manifesta por um discurso metalinguístico calcado em dicotomias, em contrários, como, por exemplo, tradição x modernidade; saber x não saber e outras congêneres.

Considerando o preconceito linguístico, Bagno (2015, p. 21-108) elencou no Capítulo 1 oito mitos:

(1) o de que o português do Brasil tenha uma unidade; (2) o de que o brasileiro não sabe português e de que só em Portugal se fala bem português; (3) o de que o português é uma língua muito difícil; (4) o de que as pessoas sem instrução falam tudo errado; (5) o de que o lugar onde melhor se fala português é no Maranhão; (6) o de que o certo seria falar assim porque se escreve assim; (7) o de que é preciso saber gramática para falar e escrever bem; (8) o de que o domínio da norma-padrão é um instrumento de ascensão social. Cada um desses mitos é analisado, mostrando quão preconceituosas são tais afirmações e destituídas de valor científico.

Combater o preconceito linguístico não significa que não se deva levar o falante de variedades estigmatizadas a dominar outras variedades prestigiadas e a ter conhecimento da norma-padrão tradicional. É oportuno lembrar que nem sempre a variedade que utilizamos segue de perto a norma gramatical, do que se conclui que há “erros” que são tidos como “horrorosos” e outros que são bem aceitos. Por exemplo, de Norte a Sul, no Brasil, apenas raramente e em determinadas situações monitoradas, usamos na língua falada o pronome oblíquo o, indicador de objeto direto: “não o vi”. É mais comum o “não vi ele”. Todavia, essa forma não é mal vista, não é estigmatizada, porque os que usam a variedade “culta” a utilizam corriqueiramente. Já o “nóis vai” é estigmatizado…, porque a classe que goza de prestígio identifica como uma expressão de pessoas não escolarizadas, ignorantes, pobretões…

Barros (In: BARROS; FIORIN, 2008, p. 339-363) examina o preconceito e a intolerância linguística em gramáticas do português do século XVI em diante. Já os neogramáticos alemães “desenvolveram as noções de arianismo e de prevalência de línguas, culturas e raças sobre outras, que formaram a base teórica do nazismo” (p. 339). Para eles, a língua original seria uma língua pura e aquelas que mais se aproximassem dela melhor seriam. Ora, como o sânscrito, falado pelos “aryas”, apresentava a pureza do indo-europeu, o alemão, próximo do sânscrito e das origens arianas, teria herdado essa pureza.

Para Barros, a intolerância apresenta-se em diferentes tipos hierarquizados: por exemplo, o preconceito em relação aos negros, no Brasil, ocorre de forma explícita e implícita, ou seja, há discursos que se assumem e outros que mascaram essa intolerância de base, manifestando uma intolerância secundária bem aceita no domínio público, como é o caso da intolerância linguística, que esconde formas diversas de intolerância.

O discurso intolerante, do ponto de vista da organização narrativa, seria um discurso de sanção aos sujeitos considerados como maus cumpridores de certos contratos sociais (por exemplo, de branqueamento da sociedade, de pureza linguística) e que, portanto, devem ser reconhecidos como tal (pretos ignorantes, maus usuários da língua, índios bárbaros, judeus exploradores, árabes fanáticos) e punidos (com a perda de direitos, de emprego, com a morte etc.) (BARROS, In: BARROS; FIORIN, 2008, p. 343).

Do ponto de vista das modalizações, Barros reconhece antipatia, irritação, ódio, raiva contra o sujeito que não cumpriu o contrato de branqueamento da sociedade, de não fanatismo religioso, bem como uma “paixão benevolente do patriotismo ou do querer fazer bem à pátria”. Barros conclui: “É esse jogo entre o querer fazer mal aos diferentes e o querer fazer bem a seus iguais que caracteriza o sujeito apaixonado intolerante” (p. 344).

Examinando A grammatica da lingoagem portuguesa, de Fernão de Oliveira (1536), Barros verifica que o autor tinha por finalidade “ensinar a bem usar a língua portuguesa aos portugueses e estrangeiros, e mostrar a superioridade da língua portuguesa em relação às demais línguas” (p. 345). Embora o autor reconheça a existência de variação linguística, ocupou-se sobretudo dos usos daqueles que ele entendia que mais sabiam a língua, os que mais liam. A superioridade da língua portuguesa criava a obrigação de “bem usar a língua em nome da nação e do povo português” (p. 345). O respeito à norma gramatical estaria atrelado ao amor à pátria. Fernão de Oliveira tinha uma visão particular do problema: a língua portuguesa já não era latim e era melhor que o latim. Valorizava os usos mais modernos e entendia que as variedades mais antigas eram ruins, feias, dissonantes. Relata Fernão de Oliveira o preconceito sofrido na infância:

Contudo, sendo eu moço pequeno, fui criado em S. Domingos de Évora, onde faziam zombaria de mim os da terra, porque o eu assim pronunciava, segundo que o aprendera na Beira (BARROS In: BARROS; FIORIN, 2008, p. 346).

Uma segunda gramática examinada por Barros é a de João de Barros, Grammatica da língua portuguesa (1540). Nela chamam a atenção o preconceito e a intolerância religiosa, bem como um discurso sobre a “pureza” da língua “original”. Em seguida, trata da obra de Júlio Ribeiro, Grammatica portuguesa (1881), da Grammatica analytica, de Maximino Maciel (1887), e Grammatica portuguesa, de João Ribeiro. Em Júlio Ribeiro, Barros vê preconceito e intolerância em relação aos usos do povo, bem como valorização dos usos mais cultos da língua. Entende o gramático que as variantes brasileiras seriam erradas ou corrompidas. Em Maximino Maciel, Barros detecta que os brasileirismos são considerados “usos de brasileiros sem instrução”, bem como intolerância com as camadas menos privilegiadas da sociedade; daí o preconceito com usos “populares”. Chegando às gramáticas do século XX, Barros focaliza a de Celso Cunha, Gramática da língua portuguesa (1972). À página 356, nota que na gramática, no século XX, no Brasil, predomina o discurso da norma prescritiva. Embora “haja mais gradação entre os usos proibidos e os prescritos […], aumentou fortemente o rol de usos possíveis. Cunha, em sua gramática, porém, quase não faz menção a variação no português de Portugal. Em relação ao português do Brasil, faz referência ao “culto formal”; as diferenças seriam “próprias do português informal, coloquial ou vulgar do Brasil”.

Como podemos verificar da análise de Barros, o preconceito linguístico não é novidade na história da língua portuguesa. E, se procurarmos exemplos de intolerância nas páginas dos jornais, particularmente na seção de cartas do leitor, aí encontraremos as mais diversas manifestações. Entre os comentários metalinguísticos dos leitores da Folha de S. Paulo, Leite (2008, p. 89) encontrou: (1) adjetivação forte: vergonhoso, lamentável, imperdoável; (2) denominação depreciativa: analfabetismo, ignorância; (3) sarcasmo: “jornalistas devem saber escrever”; (4) eufemismos: “perguntem a quem mais dotado aí de conhecimentos de português”; (5) perguntas:“quem escreveu isso?”; (6) “que barbaridade”.

Enfim, a intolerância linguística é sempre explícita; não se esconde nos seus ataques aos que praticam variedades estigmatizadas. Sua agressividade verbal tem em vista reduzir, humilhar o outro, desqualificá- lo, agredi-lo. Esquecem-se os que se comportam de tal forma que a norma-padrão que tanto defendem não é sequer seguida por eles mesmos em todas as situações."

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Preconceito e intolerância linguística

  Português   forense   :   língua   portuguesa   para   curso   de   direito   /   João   Bosco   Medeiros,   Carolina   Tomasi.   –   8.  ...