Português forense : língua portuguesa para curso de direito / João Bosco Medeiros, Carolina Tomasi. – 8. ed. – São Paulo : Atlas, 2016, p. 36-38:
Português forense : língua portuguesa para curso de direito / João Bosco Medeiros, Carolina Tomasi. – 8. ed. – São Paulo : Atlas, 2016, p. 36-38:
Português forense : língua portuguesa para curso de direito / João Bosco Medeiros, Carolina Tomasi. – 8. ed. – São Paulo : Atlas, 2016, p. 30-36:
Português forense : língua portuguesa para curso de direito / João Bosco Medeiros, Carolina Tomasi. – 8. ed. – São Paulo: Atlas, 2016, p. 26-29:
Português forense : língua portuguesa para curso de direito / João Bosco Medeiros, Carolina Tomasi. – 8. ed. – São Paulo : Atlas, 2016, p. 25-26:
Português forense : língua portuguesa para curso de direito / João Bosco Medeiros, Carolina Tomasi. – 8. ed. – São Paulo: Atlas, 2016, p. 20-25:
"No estudo da variação
sociolinguística, os linguistas observam a existência de variedades sociais a que atribuem o adjetivo cultas. A variedade “culta” pode ser
assim definida: é aquela que ocorre em usos da língua de forma mais monitorada, que são realizados por segmentos urbanos,
que estão no meio para
cima na hierarquia econômica e com amplo acesso aos bens culturais, particularmente
a educação formal, e à cultura
escrita.
Trata-se de uma variedade que é
recorrente na expressão linguística desses segmentos sociais, em situações de maior monitoração. Por isso,
recorre-se muitas vezes à expressão norma
culta real. Essas variedades sociais, no entanto, não são homogêneas (é de lembrar que
não há uma variedade “culta”, mas várias),
embora apresentem traços comuns, difundidos quer pela televisão, rádio, jornais
impressos, bem como pela escolarização de longo alcance.
A
variedade “culta” falada difere da variedade “culta” escrita; a escrita é
sempre mais conservadora que a fala, ainda que se possa verificar na escrita a presença de estruturas provenientes da fala “culta”.
Com base nesses conceitos, salienta-se então que, como as
variedades “cultas” são manifestações do uso normal (no sentido
de regular, comum,
corriqueiro) da língua,
a norma-padrão – quando existe em determinada sociedade – é um constructo idealizado (não é um “dialeto” ou um conjunto de “dialetos”, como o é a norma culta, mas uma codificação taxonômica, de formas tomadas como um modelo linguístico ideal) (FARACO, 2009, p. 172).
A fixação de um padrão é resultado
de um projeto político que objetiva impor uniformidade
onde a
heterogeneidade é sentida como negativa (como “ameaçadora de uma certa ordem”).
Foi esse o caso do Brasil no século XIX em que certa elite letrada, diante das variedades populares (em particular do que se
veio a chamar pejorativamente de “pretoguês”) e face a um complexo
jogo ideológico (em boa parte assentado em seu projeto de construir
um país branco e europeizado) trabalhou pela fixação de uma norma-padrão (p. 172).
Foi, para o linguista, o desejo
de construir uma sociedade branca e europeizada que levou a elite a renegar as características linguísticas do
País. Inicialmente, impedindo, no século XVIII, o uso das línguas indígenas e da língua geral e,
posteriormente, na segunda metade do século XX, impondo à sociedade
uma norma-padrão artificial que atormenta os brasileiros.
Embora mostre uma relativa
unidade linguística, o Brasil tem dificuldade de reconhecer sua cara linguística: não admitimos que somos um
país multilíngue, pois há centenas de línguas indígenas e dezenas de línguas de imigração, que são minoritárias, mas significativas para nosso patrimônio cultural. Além disso, o que se observa no português
falado pela maioria dos brasileiros é que se trata de uma língua não uniforme, mas diversificada
tanto no espaço geográfico quanto no espaço social. Essa diversidade não constitui problema, mas uma riqueza cultural de que temos de nos orgulhar, e não de nos envergonhar: “o
problema está nas formas como lidamos com essa diversidade […]. O problema está
nas imagens saturadas de valores negativos que temos de nós como falantes” (FARACO,
2009, p. 181).
A norma-padrão é uma norma
distante das variedades “cultas” praticadas no Brasil. Em seu nome, têm-se praticado uma violência simbólica e
uma discriminação sociocultural. Diante desses fatos, os linguistas entendem que não há por que ocupar-se de uma norma
que não é utilizada e que é preciso defender o acesso escolar às variedades “cultas”. Defendem que à
norma-padrão sejam incorporados, em gramáticas e dicionários, os fenômenos característicos das variedades “cultas”, ou seja, é necessário que a norma-padrão seja um reflexo da norma “culta”
praticada no Brasil. Há algum sentido, já entrado o século XXI, em continuarmos nos ocupando da norma-padrão, visto
não haver consenso sobre a expressão falada padrão? Temos mesmo necessidade de fixar uma norma-padrão brasileira? A diversidade linguística nacional põe algum risco à unidade das variedades “cultas”
faladas? Evidentemente, a essas perguntas
retóricas cabe uma resposta: não.Conclui Faraco (2009, p. 174):
Diante
desses fatos, talvez possamos mesmo abrir mão de projetos padronizadores,
direcionando nossas energias para o que efetivamente
interessa: de um lado, a descrição e a difusão das variedades cultas faladas e
escritas; e, de outro, o combate sistemático aos preceitos da norma curta que,
em nome de uma norma-padrão artificialmente fixada, ainda circulam entre nós quer na desqualificação da língua portuguesa
do Brasil, quer na desqualificação dos seus falantes.
Para Zilles, no prefácio à obra de Faraco (2009,
p. 15),
sofremos, de fato, uma esquizofrenia linguística, pois amargamos uma dura dissociação entre a ação (o modo como falamos)
e o pensamento (o modo como representamos o modo como falamos). Essa
dissociação, contudo, não é endógena como a patologia cujo nome tomamos
emprestado acima, pois seu arcabouço
é sócio-histórico, e,
portanto, passível de ser conhecido, explicado e quiçá modificado. Mas é preciso querer fazê-lo.
É preciso vontade política.
Segundo Zilles, ainda, a norma
linguística modelar recebe diversas denominações: norma culta, norma-padrão, norma gramatical, gramática, língua culta, língua-padrão, língua certa, língua cuidada, língua
literária, entre tantas outras.
Bagno (In: ZILLES; FARACO, 2015, p. 193), examinando a falsa sinonímia norma-padrão = norma culta, fez levantamento dos autores de livros didáticos e encontrou as seguintes expressões: língua culta, língua formal, língua oficial, língua-padrão, linguagem formal, modalidade culta, norma culta, norma-padrão, padrão culto, padrão formal, português-padrão, pronúncia-padrão, uso culto, uso formal, variação-padrão, variante culta, variante-padrão, variedade culta, variedade formal, variedade-padrão, variedades de prestígio.
Até mesmo no ENEM, Bagno (p. 197-198) identificou
imprecisão terminológica em relação à “norma
culta”, que é tratada como modalidade culta, modalidade culta escrita,
modalidade-padrão, norma culta
escrita, norma-padrão. E, adiante (p. 210), volta a insistir que, quando se
usa a terminologia norma culta nas provas do ENEM,
o que está em jogo
é a variação social da língua, isto é, as diferenças que a língua
apresenta de acordo
com variáveis sociais como
classe socioeconômica, grau de escolarização, idade, sexo, ambiente rural ou
urbano etc. Quando se usa, por outro
lado, a escala de formalidade (ou de monitoramento) para avaliar determinado
uso da língua, o que está em jogo é a variação estilística.
Ora, a falta de precisão com relação à nomenclatura revela
que o que está no centro das discussões é mal compreendido e mal avaliado pela sociedade
brasileira. Faraco (2009, p. 121), com base nas acusações de puristas que
viam erros nos clássicos, “sempre que seus usos desmentiam as regras
agora inventadas” (p. 120), afirma que
é certamente esse vício de
origem a causa principal do desenvolvimento da norma curta entre nós – essa
coleção de preceitos categóricos que se autojustificam, que recusam a norma real, que desmerecem o trabalho dos escritores, dos
bons dicionaristas e gramáticos e que excluem qualquer diversificação de suas fontes.
Essas críticas à postura purista e conservadora no uso da
língua, no entanto, não devem ser entendidas
como uma postura relativista no estudo do português brasileiro. Em
relação ao ensino da língua materna, Bagno (In: ZILLES; FARACO, 2015, p. 200) endossa o
pensamento de Magda Soares, para quem as camadas
populares têm o direito “de apropriar-se do dialeto de prestígio”. O objetivo
desse tipo de ensino seria
levar os
alunos pertencentes a essas camadas a dominá-lo, não para que se adaptem às
exigências de uma sociedade que divide e discrimina, mas para que adquiram
um instrumento fundamental para a participação política e a luta contra as desigualdades sociais.
Não se trata, pois, de abandonar
o ensino exclusivo
de uma norma, mas de “assumir a responsabilidade
de letrar os aprendizes, isto é, inserir os cidadãos na cultura eminentemente
letrada que domina a sociedade em que
vivem, familiarizando-os com os mais diversos tipos e gêneros discursivos, falados e escritos, que circulam
na sociedade” (BAGNO In: ZILLES; FARACO, 2015, p. 201).
A questão da língua no Brasil, para os linguistas, não é
apenas linguística, mas, antes de tudo, política, no sentido de que a variedade
prestigiada é que deveria ser ensinada na escola, e não a norma-padrão, variedade abstrata, que não é falada na sociedade brasileira. A
relevância do tema pode ser observada sobretudo quando
se depara com efeitos deletérios que
o preconceito linguístico produz, principalmente a intolerância
linguística, notável em expressões que diminuem pessoas que dominam outras
variedades linguísticas, as não prestigiadas socialmente: ignorante, estúpido, desqualificado, idiota e outras que aproximam
seres humanos do mundo animal.
Toda língua é heterogênea, isto é, é constituída por um
conjunto de variedades; a realidade das línguas não é a unidade homogênea.
Segundo Castilho (2010, p. 197), as línguas, além de heterogêneas, são voltadas para a mudança. Não há, pois,
senão variedades linguísticas e não, propriamente, uma língua superior às variedades, visto que
são estas que lhe dão sustentação, que a fazem ser uma língua; nem há língua de um lado e variedades de outro; língua é o conjunto das variedades.
Faraco define então língua não como entidade linguística, mas como entidade cultural e política, ou seja, critérios puramente linguísticos não são adequados para definir língua, pois ela comporta tanto a dimensão política quanto a cultural.
Cada variedade segue uma norma. Ora, como toda norma
apresenta uma organização estrutural, não há
consistência em afirmar a existência
de erro em língua. Isso significa que
toda variedade possui uma gramática. Falar em erro seria aplicar a
organização estrutural de uma variedade a outra variedade. E é por querer aplicar a estrutura da
variedade prestigiada à variedade não prestigiada (estigmatizada) que são comuns, na sociedade brasileira, juízos depreciativos sobre esta última:
identifica-se erro quando
se trata tão somente de
diversidade. E, em geral, apenas são percebidas como erro as formas não usadas pela classe
que desfruta de prestígio.
Toda realidade linguística
organiza formas heterogêneas, híbridas e mutantes. Essa a razão por que Faraco utiliza a expressão norma curta
para referir-se aos que se valem de uma norma supostamente “culta”
para discriminar outras variedades linguísticas. A norma culta é uma norma estreita,
particularmente porque desconsidera o que já está registrado em
dicionários e até em determinadas gramáticas. Esse é o caso, por exemplo, da regência do verbo assistir como
transitivo direto, que alguns puristas teimam em
considerar como errônea (“ele assistiu o
programa Roda Viva”), mas que já é usada
corriqueiramente por pessoas de educação
superior e de status social de
prestígio; a despeito do desagrado
dos puristas, essa forma já está registrada em dicionário: “na literatura
contemporânea, a tendência, ao que
parece, é para o complemento direto” (LUFT, 1999, p. 79). Cunha (1985, p. 508) também
é assertivo em relação a tal uso:
Na linguagem
coloquial brasileira, o verbo constrói-se, em tal acepção
[“estar presente, presenciar”], de preferência com objeto direto (cf.: assistir
o jogo, um filme), e escritores modernos
têm dado acolhida à regência
gramaticalmente condenada.
Norma culta, portanto, porque
nela cabem apenas condenações a formas que indistintamente os brasileiros usam no seu dia a dia; norma
em que não cabe nada além de preconceitos linguísticos, tachando
de ignorantes os que se utilizam de variedades menos prestigiadas.
O uso da expressão norma culta, ultrapassando os muros da
universidade, tornou-se comum no discurso
da mídia, mas perdeu a precisão semântica. E mesmo no discurso universitário a expressão apresentava
imprecisão, confundindo-se com norma-padrão, que é outro conceito
distinto. Norma culta também é identificada com norma
gramatical, uma norma que se distancia e às vezes conflita com o uso culto efetivo que ocorre no Brasil. Nos estudos linguísticos, considera-se culto o uso da língua praticado por pessoas de escolarização superior (os que fizeram
universidade), têm acesso a bens culturais, como jornais, livros, teatro,
cinema, nasceram, cresceram e sempre viveram em ambiente urbano, como já afirmamos.
Tradicionalmente, quando se fala em estudar ou ensinar
português, vem à mente o ensino da gramática;
daí a sinonímia, em nossa sociedade, entre ensinar gramática e ensinar
português. E ensinar gramática também nunca esteve livre de distorções:
entendia-se ora que se tratava de ensinar nomenclatura, conceitos, classificações, ora ensinar usos que os gramáticos entendiam
ser o “correto”.
A escola tradicional negava a
variação linguística em seu ensino. Ela entendia que variação é equivalente a erro e lhe caberia corrigir
os desvios. Ora, embora o tema da variação tenha sido ultimamente objeto do discurso pedagógico,
ainda não conseguimos “construir uma pedagogia adequada a essa área”.
Em vez da preocupação com
projetos padronizadores do português brasileiro, poderíamos dedicar esforços no sentido da descrição e difusão
das “variedades cultas faladas e escritas” e combater sistematicamente os “preceitos da norma
curta que, em nome de uma norma-padrão artificialmente fixada, ainda circulam entre nós quer na
desqualificação da língua portuguesa do Brasil, quer na desqualificação dos seus
falantes” (FARACO, 2009, p. 174). E, citando Lucchesi, afirma que o combate é
de natureza política:
o estigma ainda recai pesadamente sobre as variantes mais características da norma popular, fortalecendo-se a cada dia […] um preconceito que, sem fundamento linguístico, nada mais é do que a crua manifestação da discriminação econômica e da ideologia da exclusão social (p. 174).
Um dos projetos padronizadores é
o da pronúncia brasileira, que ocupou a intelectualidade nas décadas de 1930-1950, mas foi abandonado.
Entendia-se que a pronúncia carioca seria a padrão para o teatro, o canto, os meios de comunicação
social. Conclui Faraco: “O Brasil passa muito bem sem uma norma-padrão para a pronúncia: ela não
se mostra nem necessária, nem conveniente” (p. 175). Em relação à escrita, afirma a necessidade de uma grafia-padrão, a
do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras. Todavia, com
relação à regulamentação dos fenômenos
sintáticos, com objetivo de padronização, questiona:“não basta deixar
que o normal seja o normativo
para a fala e para a escrita?” (p. 175).
Tudo isso parece de difícil assimilação, porque ainda nos assombra a norma-padrão escrita
fixada no século XIX. Em vez de nos ocuparmos com
uma gramática que não corresponde aos nossos usos linguísticos, precisamos é
nos familiarizar com diferentes gêneros discursivos, e não apenas com textos literários; o domínio da leitura
e a produção textual de outros tipos de textos são igualmente necessários; entre eles, podemos citar: os textos jornalísticos, os de divulgação científica, os textos
argumentativos, a propaganda, os textos administrativos
(oficiais, comerciais) e técnicos. Já não cabe à escola ocupar-se do gênero redação escolar, ou seja, aquela produção artificial, sem respaldo
social e apenas com a preocupação com
notas escolares. A produção de textos precisa ter funcionalidade, atender a
efetivos eventos comunicativos.
Há certa ilusão na escola
tradicional de que a correção de regência verbal e nominal, concordância verbal e nominal, eliminação de mistura
pronominal, colocação pronominal à moda portuguesa seja suficiente para que o aprendiz tenha acesso à expressão “culta”
da língua e a seu domínio. Se pretendemos firmar
o uso da variedade prestigiada, precisamos despertar a consciência para a variação
linguística. Só assim se perceberá a distância entre as variedades e se poderá
vir a usar aquela que funciona melhor em determinadas situações.
A expressão norma
culta passou a designar os preceitos da tradição conservadora e
pseudopurista e, prosopopeicamente,
ganhou vida de ser humano: “a norma culta não aceita tal uso”; “a norma culta
rejeita esse uso”; “a norma culta não admite”;
“a norma culta condena”; “a norma culta proíbe”. Faraco (2009,
p. 25) conclui:
Basta,
em nome desse ente etéreo – a Sra. Dona Norma Culta – asseverar categoricamente
o que se imagina ser o certo e o errado,
como se houvesse indiscutível consenso sobre o assunto e fossem claras e
precisas as linhas divisórias entre o “condenável”
e o “aceitável”, entre o que a Sra. Dona Norma Culta “aceita”, “admite”,
“exige” e o que ela “condena”, “proíbe”, “não aceita”, “não admite”.
Há ainda os que adotam um
discurso supostamente mais “moderno”, admitindo determinados usos, mas sempre
ressalvando tratar-se de usos informais, bem como os que veem decadência e
degradação em determinados usos que
ocorrem no Brasil; usos que refletiriam desleixo e ignorância dos falantes. A
essa postura conservadora a mídia ofereceu espaços generosos para os chamados
por Bagno (2015, p. 116, 148, 164) de
“comandos paragramaticais”. Também, as grandes empresas jornalísticas têm
criado manuais de redação em
que apresentam um conjunto de normas rígidas
nem sempre seguidas
por seus próprios jornalistas.
A expressão norma culta ainda se confunde com língua escrita.
Embora haja gêneros em que se espera o uso de uma variedade
que goza de prestígio social,
não se pode afirmar que a língua
escrita só utiliza
essa variedade. Há inúmeras situações em que utilizamos na língua
escrita outras variedades não prestigiadas,
como em um bilhete familiar ou entre amigos, em um e-mail entre colegas de classe, em um blog, em um chat. E que dizer de inúmeras canções
que se valem de variedades até estigmatizadas, ou de textos literários que estrategicamente se valem de variedades
múltiplas que dão feição estética ao texto? Lembremo-nos de que há no Brasil um grande
contingente de alfabetizados que são funcionais: apenas
sabem escrever
o próprio nome, ou leem e escrevem
com muita dificuldade, mas não são capazes de entender o que leem. Daí Faraco (2009, p. 27)
afirmar que
continuamos
uma sociedade perdida em confusão em matéria de língua: temos dificuldades para
reconhecer nossa cara linguística,
para delimitar nossa(s) norma(s)
culta(s) efetiva(s) e, por consequência, para
dar referências consistentes e seguras aos falantes em geral
e ao
ensino de português
em particular.
Em lugar da cultura linguística negativa do erro, é preciso estabelecer uma cultura
linguística positiva. E, embora haja algum progresso em relação ao tema
da variação, ainda predominam as preocupações
com a variação geográfica, que envolve preconceito; em geral, ela ainda
é vista de um ponto de vista anedótico
(às vezes, brincadeiras com o r retroflexo,
por exemplo, ou variações de vocabulário). No
estudo da variação rural, sobejam os exemplos da fala de Chico Bento, que,
como sabemos, reflete uma elaboração estereotipada da fala rural.
Em relação à variação estilística, há livros didáticos
que ainda insistem na inadequação de determinados usos em situações formais:
por exemplo, entendem que a única variedade a ser utilizada seria a prestigiada, desconsiderando as
estratégias que o locutor pode vir a utilizar para a produção de sentido. Imagine-se, por exemplo, uma
pessoa, numa rodinha de amigos, utilizando um português altamente monitorado, simplesmente para provocar riso entre os
companheiros. Os recursos para a variação
estilística diferem de indivíduo para indivíduo, segundo seu grau de
letramento. Se mais letrado, o
indivíduo dispõe de mais estilos que se aproximam da norma idealizada da língua
escrita formal, mais monitorada. Bagno (In: ZILLES;
FARACO, 2015, p. 210) afirma
ser uma falácia definir a norma culta ou norma-padrão como linguagem formal:
a (in)formalidade de uma situação
não se vincula exclusivamente ao emprego (ou não) de formas gramaticais normatizadas ou de uma pronúncia
“culta”: há muitos outros
elementos verbais e não verbais que
colaboram para conferir maior ou menor formalidade a um evento comunicativo.
Raramente tratam os livros didáticos da variação social,
dos conflitos, das aproximações e distanciamentos, entre norma “culta”,
aquela que as pessoas de educação superior
utilizam, e as outras, pois é aí que
residem os piores estigmas de nossa sociedade. E é a cultura do erro no Brasil que impede uma discussão
aberta e não preconceituosa do português falado
pelos brasileiros.
Mesmo os exames de avaliação do sistema escolar,
como SAEB e ENEM,
são
ainda muito pouco abrangentes e não saem dos dois eixos rural/urbano e
formal/informal. […] Não encaram a variação como um contínuo (o que aparece é,
no geral, uma concepção estanque da relação da variação com o contexto) e, por
nunca chegarem à variação
social, não alcançam o julgamento de atitudes
estigmatizadoras (FARACO, 2009, p. 179)."
Português forense : língua portuguesa para curso de direito / João Bosco Medeiros, Carolina Tomasi. – 8. ...