sexta-feira, 8 de abril de 2022

Preconceito e intolerância linguística

 

Português forense : língua portuguesa para curso de direito / João Bosco Medeiros, Carolina Tomasi.  8. ed.  São Paulo : Atlas, 2016, p. 36-38:

"Quando se fala em preconceito, imediatamente nos lembramos do preconceito contra cor de pele, do preconceito contra religiões, do preconceito contra homossexuais e outros, mas raramente nos damos conta de que o preconceito linguístico é tão maléfico quanto qualquer outro. Para Leite (2008, p. 13), a intolerância linguística parece nem existir, passa quase despercebida pela opinião pública:

Contudo, a intolerância linguística existe e é tão agressiva quanto outra qualquer, pois atinge o cerne das individualidades. A linguagem é o que o homem tem de mais íntimo e o que representa a sua subjetividade. Não é exagero, portanto, dizer que uma crítica à linguagem do outro é uma arma que fere tanto quanto todas as armas.

Preconceito e intolerância linguística são comportamentos desrespeitosos de um falante diante da linguagem do outro. Como cidadãos, precisamos tomar consciência desse tipo de preconceito, para exercer uma atuação crítica sempre que nos depararmos com a ocorrência de tais fenômenos e contribuir para que manifestações de preconceitos e intolerância linguística não ocorram. Leite (2008, p. 14) entende que essa atitude “faz parte da formação integral do cidadão, pois é também indicativo de respeito pelas diferenças do outro”. A linguagem não é um fenômeno homogêneo, antes, pelo contrário, é um fenômeno multiforme e heteróclito, que é diverso de usuário para usuário. Os preconceituosos, no entanto, entendem que ela deva ser homogênea e, por isso, não toleram a diversidade e exigem o respeito a padrões uniformizadores.

Se examinarmos a fundo o preconceito e a intolerância linguística, verificaremos tratar-se, antes, de violência contra pessoas, que, em geral, imigraram de outras regiões, vivem nas periferias das cidades, ocupam postos de trabalho desvalorizados socialmente, não tiveram oportunidade de frequentar a escola. Daí os críticos da linguagem alheia se apoiarem nas realizações linguísticas, que pertencem a outras variedades prestigiadas, para atacarem, depreciarem, diminuírem e humilharem pessoas. Intolerância, portanto, sobretudo com relação a diferenças.

Em seu livro Preconceito e intolerância linguística, Leite (2008, p. 24-25) estabelece a diferença entre preconceito e intolerância: enquanto o preconceito seria uma discriminação silenciosa, a intolerância seria ruidosa:

O preconceito é a discriminação silenciosa e sorrateira que o indivíduo pode ter em relação à linguagem do outro: é um não gostar, um achar-feio ou achar-errado um uso (ou uma língua), sem a discussão do contrário, daquilo que poderia configurar o que viesse a ser o bonito ou o correto. É um não gostar sem ação discursiva clara sobre o fato rejeitado. A intolerância, ao contrário, é ruidosa explícita, porque, necessariamente, se manifesta por um discurso metalinguístico calcado em dicotomias, em contrários, como, por exemplo, tradição x modernidade; saber x não saber e outras congêneres.

Considerando o preconceito linguístico, Bagno (2015, p. 21-108) elencou no Capítulo 1 oito mitos:

(1) o de que o português do Brasil tenha uma unidade; (2) o de que o brasileiro não sabe português e de que só em Portugal se fala bem português; (3) o de que o português é uma língua muito difícil; (4) o de que as pessoas sem instrução falam tudo errado; (5) o de que o lugar onde melhor se fala português é no Maranhão; (6) o de que o certo seria falar assim porque se escreve assim; (7) o de que é preciso saber gramática para falar e escrever bem; (8) o de que o domínio da norma-padrão é um instrumento de ascensão social. Cada um desses mitos é analisado, mostrando quão preconceituosas são tais afirmações e destituídas de valor científico.

Combater o preconceito linguístico não significa que não se deva levar o falante de variedades estigmatizadas a dominar outras variedades prestigiadas e a ter conhecimento da norma-padrão tradicional. É oportuno lembrar que nem sempre a variedade que utilizamos segue de perto a norma gramatical, do que se conclui que há “erros” que são tidos como “horrorosos” e outros que são bem aceitos. Por exemplo, de Norte a Sul, no Brasil, apenas raramente e em determinadas situações monitoradas, usamos na língua falada o pronome oblíquo o, indicador de objeto direto: “não o vi”. É mais comum o “não vi ele”. Todavia, essa forma não é mal vista, não é estigmatizada, porque os que usam a variedade “culta” a utilizam corriqueiramente. Já o “nóis vai” é estigmatizado…, porque a classe que goza de prestígio identifica como uma expressão de pessoas não escolarizadas, ignorantes, pobretões…

Barros (In: BARROS; FIORIN, 2008, p. 339-363) examina o preconceito e a intolerância linguística em gramáticas do português do século XVI em diante. Já os neogramáticos alemães “desenvolveram as noções de arianismo e de prevalência de línguas, culturas e raças sobre outras, que formaram a base teórica do nazismo” (p. 339). Para eles, a língua original seria uma língua pura e aquelas que mais se aproximassem dela melhor seriam. Ora, como o sânscrito, falado pelos “aryas”, apresentava a pureza do indo-europeu, o alemão, próximo do sânscrito e das origens arianas, teria herdado essa pureza.

Para Barros, a intolerância apresenta-se em diferentes tipos hierarquizados: por exemplo, o preconceito em relação aos negros, no Brasil, ocorre de forma explícita e implícita, ou seja, há discursos que se assumem e outros que mascaram essa intolerância de base, manifestando uma intolerância secundária bem aceita no domínio público, como é o caso da intolerância linguística, que esconde formas diversas de intolerância.

O discurso intolerante, do ponto de vista da organização narrativa, seria um discurso de sanção aos sujeitos considerados como maus cumpridores de certos contratos sociais (por exemplo, de branqueamento da sociedade, de pureza linguística) e que, portanto, devem ser reconhecidos como tal (pretos ignorantes, maus usuários da língua, índios bárbaros, judeus exploradores, árabes fanáticos) e punidos (com a perda de direitos, de emprego, com a morte etc.) (BARROS, In: BARROS; FIORIN, 2008, p. 343).

Do ponto de vista das modalizações, Barros reconhece antipatia, irritação, ódio, raiva contra o sujeito que não cumpriu o contrato de branqueamento da sociedade, de não fanatismo religioso, bem como uma “paixão benevolente do patriotismo ou do querer fazer bem à pátria”. Barros conclui: “É esse jogo entre o querer fazer mal aos diferentes e o querer fazer bem a seus iguais que caracteriza o sujeito apaixonado intolerante” (p. 344).

Examinando A grammatica da lingoagem portuguesa, de Fernão de Oliveira (1536), Barros verifica que o autor tinha por finalidade “ensinar a bem usar a língua portuguesa aos portugueses e estrangeiros, e mostrar a superioridade da língua portuguesa em relação às demais línguas” (p. 345). Embora o autor reconheça a existência de variação linguística, ocupou-se sobretudo dos usos daqueles que ele entendia que mais sabiam a língua, os que mais liam. A superioridade da língua portuguesa criava a obrigação de “bem usar a língua em nome da nação e do povo português” (p. 345). O respeito à norma gramatical estaria atrelado ao amor à pátria. Fernão de Oliveira tinha uma visão particular do problema: a língua portuguesa já não era latim e era melhor que o latim. Valorizava os usos mais modernos e entendia que as variedades mais antigas eram ruins, feias, dissonantes. Relata Fernão de Oliveira o preconceito sofrido na infância:

Contudo, sendo eu moço pequeno, fui criado em S. Domingos de Évora, onde faziam zombaria de mim os da terra, porque o eu assim pronunciava, segundo que o aprendera na Beira (BARROS In: BARROS; FIORIN, 2008, p. 346).

Uma segunda gramática examinada por Barros é a de João de Barros, Grammatica da língua portuguesa (1540). Nela chamam a atenção o preconceito e a intolerância religiosa, bem como um discurso sobre a “pureza” da língua “original”. Em seguida, trata da obra de Júlio Ribeiro, Grammatica portuguesa (1881), da Grammatica analytica, de Maximino Maciel (1887), e Grammatica portuguesa, de João Ribeiro. Em Júlio Ribeiro, Barros vê preconceito e intolerância em relação aos usos do povo, bem como valorização dos usos mais cultos da língua. Entende o gramático que as variantes brasileiras seriam erradas ou corrompidas. Em Maximino Maciel, Barros detecta que os brasileirismos são considerados “usos de brasileiros sem instrução”, bem como intolerância com as camadas menos privilegiadas da sociedade; daí o preconceito com usos “populares”. Chegando às gramáticas do século XX, Barros focaliza a de Celso Cunha, Gramática da língua portuguesa (1972). À página 356, nota que na gramática, no século XX, no Brasil, predomina o discurso da norma prescritiva. Embora “haja mais gradação entre os usos proibidos e os prescritos […], aumentou fortemente o rol de usos possíveis. Cunha, em sua gramática, porém, quase não faz menção a variação no português de Portugal. Em relação ao português do Brasil, faz referência ao “culto formal”; as diferenças seriam “próprias do português informal, coloquial ou vulgar do Brasil”.

Como podemos verificar da análise de Barros, o preconceito linguístico não é novidade na história da língua portuguesa. E, se procurarmos exemplos de intolerância nas páginas dos jornais, particularmente na seção de cartas do leitor, aí encontraremos as mais diversas manifestações. Entre os comentários metalinguísticos dos leitores da Folha de S. Paulo, Leite (2008, p. 89) encontrou: (1) adjetivação forte: vergonhoso, lamentável, imperdoável; (2) denominação depreciativa: analfabetismo, ignorância; (3) sarcasmo: “jornalistas devem saber escrever”; (4) eufemismos: “perguntem a quem mais dotado aí de conhecimentos de português”; (5) perguntas:“quem escreveu isso?”; (6) “que barbaridade”.

Enfim, a intolerância linguística é sempre explícita; não se esconde nos seus ataques aos que praticam variedades estigmatizadas. Sua agressividade verbal tem em vista reduzir, humilhar o outro, desqualificá- lo, agredi-lo. Esquecem-se os que se comportam de tal forma que a norma-padrão que tanto defendem não é sequer seguida por eles mesmos em todas as situações."

Classificação de Bagno

 

Português forense : língua portuguesa para curso de direito / João Bosco Medeiros, Carolina Tomasi.  8. ed.  São Paulo : Atlas, 2016, p. 30-36:

"A divisão, em sentido amplo, entre norma “culta” e norma-padrão é criticada por Bagno, que contesta o uso de termos como culto, popular, coloquial, formal, informal nos estudos sociolinguísticos. Se há uma linguagem “culta”, é de supor que a outra seja “inculta”. Essa, no entanto, não é uma nomenclatura muito adequada, pois é impróprio atribuir à linguagem defendida pela gramática normativa, que é apenas uma variedade do Português brasileiro, o nome de culta. Da mesma forma, o termo popular é impreciso, assim como coloquial.

Em A norma oculta, Bagno (2003, p. 59) contesta o uso das expressões língua popular, norma popular, variedades populares para designar as variedades linguísticas de falantes sem escolaridade superior completa, com pouca ou nenhuma escolarização, que moram ou na zona rural ou na periferia das grandes cidades. Popular não é antônimo de culto nem de inculto. Povo compreenderia apenas pessoas das classes sociais desprestigiadas? Existiria povo sem cultura? Muitas vezes, o adjetivo popular é usado pejorativamente para indicar algo de pouco valor, sem prestígio social.

Bagno (2015, p. 318-320) afirma:

Existem dois termos que, para a infelicidade geral da nação brasileira, são invocados a todo momento por leigos e não tão leigos quando o assunto é língua e ensino de língua. O primeiro é norma culta, que as pessoas teimam e reteimam em achar que é sinônimo de norma-padrão. E o segundo é coloquial ou coloquialismo, que os mesmos desinformados querem que seja sinônimo de popular ou falado […].

É impossível confundir aquilo que é o português brasileiro em suas múltiplas variedades, incluindo as dos falantes com maior prestígio socioeconômico (norma “culta”), e aquilo que uma longa tradição prescritivo-normativa, inspirada na literatura portuguesa do século XIX e em conceitos arcaicos de beleza e elegância herdados do pensamento gramatical greco-latino, criou no imaginário linguístico das pessoas, sobretudo das camadas privilegiadas da população (norma-padrão). Assim, uma construção como Falta dez dias para o Natal é perfeitamente culta, além de vernácula, por representar um uso difundido por todo o espectro socioeconômico da população brasileira, incluindo produções escritas mais monitoradas – no entanto, ela não é acolhida pela norma-padrão, que a rejeita veementemente como erro de concordância.

Em relação às noções de formalidade, informalidade, regionalismo e língua falada, Bagno (2015, p. 320-321) também enfatiza ser “erro sério definir a norma culta ou mesmo a norma-padrão como ‘linguagem formal’”. Um falante letrado não pode se valer de formas gramaticais em situações informais, como nos casos em que estrategicamente escolhe determinada variedade linguística para provocar humor, por exemplo. Uma situação informal não obriga o uso de uma variedade estigmatizada e vice-versa. Um falante da variedade estigmatizada também modula sua produção linguística, dependendo da situação, a fim de torná-la mais formal, ou seja, não há falante que se utilize apenas de um estilo.

Outra consideração de Bagno diz respeito à “boa teoria linguística” relativa às variedades que ocorrem na língua: ela não seria dicotômica, nem discreta (como a que afirma a existência de uma variedade “culta” em oposição a uma variedade “não culta”). Ela deveria considerar o contínuo da realidade sociolinguística de uma comunidade:

Um modelo de análise das interações verbais não pode de maneira alguma se reduzir a duas entidades estanques, cada uma delas mesclando e confundindo variação social, estilística e diamésica (fala/escrita), como se faz tão frequentemente quando se opõe, de um lado, “modalidade-padrão culta formal escrita” e, de outro, “modalidade popular informal coloquial falada” (BAGNO, 2015, p. 322).

Desfiando cada um dos elementos, Bagno propõe um contínuo que compreende: (1) + falado a + escrito; (2) – monitorado a + monitorado; (3) + vernáculo, passando por + padronizado até + hipercorreto; (4) + regional a – regional; (5) + rural a + urbano, passando por rurbano. E continua Bagno (2015, p. 322) afirmando que, dentro desse contínuo, todos os tipos de variação são possíveis, dependendo de quem fala/escreve, com quem, onde fala/escreve, quando fala/escreve, por que fala/escreve, para que fala/escreve etc. Considerando o contínuo mais falado até mais escrito, temos de levar em conta os gêneros textuais híbridos sobretudo os produzidos em ambientes virtuais, como os que ocorrem em salas de bate-papo; em relação aos textos falados, reputem-se os que foram previamente escritos e são lidos ou manifestados depois de decorados.

No contínuo que compreende os usos mais vernaculares, que são comuns a todas as variedades sociolinguísticas, aos usos mais padronizados, que buscam seguir as prescrições normativas, pode-se chegar até ao fenômeno da hiperecorreção. Nesse caso, seriam exemplos: fazem dez dias que não o vejo; haviam dez pessoas na sala; não tenho compreendido-o, que não são prescritos pela gramática tradicional e revelam insegurança linguística do locutor.

Bagno (2015, p. 12-13) entende que a realidade sociolinguística deva ser analisada sob os seguintes focos:

1. Norma-padrão: modelo idealizado de língua “certa”, prescrito pela tradição gramatical: “não corresponde a nenhuma variedade falada autêntica” nem à escrita mais monitorada.

2. Um amplo continuum que compreende: (a) o conjunto das variedades prestigiadas: “faladas pelos cidadãos de maior poder aquisitivo, de maior nível de escolarização e de maior prestígio sociocultural”;

(b) o conjunto das variedades estigmatizadas, “falada pela imensa maioria da nossa população, seja nas zonas rurais, seja nas periferias e zonas degradadas das nossas cidades, onde vivem os brasileiros mais pobres, com menor acesso à escolarização de qualidade, desprovidos de muitos de seus direitos mais elementares”.

Em Gramática: passado, presente e futuro, Bagno (2009, p. 45) afirma:

Na minha descrição, procuro mostrar que esses paradigmas se distribuem ao longo de um continuum dialetal, isto é, de uma linha sobre o qual distribuí as muitas variedades sociolinguísticas do português brasileiro: num de seusextremos estão as variedades rurais e/ou urbanas menos prestigiadas na hierarquia social, cujos falantes são os que mais sofrem com a injusta distribuição dos bens e das riquezas, sem acesso, entre outras coisas, a uma educação de qualidade; no outro, as variedades urbanas mais prestigiadas, cujos falantes ocupam os postos superiores da hierarquia social e têm acesso aos bens materiais e culturais mais valorizados, inclusive a uma boa educação formal. Entre os dois extremos, há uma grande zona intermediária. [rurbana].

Para Bagno (2003, p. 142), os fenômenos que normalmente são chamados de erros podem dividir-se em: //(1) traços graduais e (2) traços descontínuos. Os primeiros são os que ocorrem ao longo do contínuo das variedades em grau variável de frequência, maior ou menor; os traços descontínuos são os que ocorrem com maior frequência nas variedades estigmatizadas e vão desaparecendo conforme subirmos na escala social, ou nos aproximamos das variedades prestigiadas. Por exemplo:

1. Traço gradual: redução do ditongo ou, que é pronunciado o. É um fenômeno que ocorre em todas as variedades linguísticas do português brasileiro, em todas as classes sociais de qualquer região do Brasil, sem diferenças em relação ao nível de escolarização. Os brasileiros dizem ôro, poco, chego (ouro, pouco, chegou). Também há monotongação em: bejo, chero, dexa, pexe, quejo (beijo, cheiro, deixa, peixe, queijo). Ocorre que o que se escreve OU é pronunciado em todas as situações e contextos, tanto no português-padrão quanto no português não padrão. O que se escreve EI, porém, só se transforma em E em algumas situações” (BAGNO, 2001, p. 88).

2. Traço descontínuo: esse traço não aparece nas realizações linguísticas das variedades prestigiadas:trabaio, teia, paia (trabalho, telha, palha).

Constituem também traço descontínuo formas verbais como: nóis vai, nóis fumo, nóis fez. Falantes de variedades prestigiadas repelem essas formas por considerá-las de uso de falantes pouco ou nada escolarizados, de classe social inferior ou ignorantes da zona rural.

Em relação ao vocabulário, são traços descontínuos: despois, antonce, fruita, escuitar, menhã (essas palavras, no entanto, aparecem em fases mais antigas da língua portuguesa, mas hoje são estigmatizadas).

Enquanto os traços descontínuos são ridicularizados socialmente pelos falantes de variedades prestigiadas e no processo de escolarização os professores buscam eliminá-los, os traços graduais, quando assumidos pelas variedades prestigiadas, não são combatidos nem estigmatizados e deixam de ser considerados erros. São exemplos:

• Deixe eu ver/deixa eu ver = deixe-me ver.

• Entre eu e você = entre mim e você.

• Pega ela = pega-a.

• Tem coisa que só a Philco faz pra você (slogan da Philco que privilegia o uso de ter em lugar dehaver).

• Para mim fazer o que você pediu, vou demorar uma semana = para eu fazer o que você me pediu, vou demorar uma semana.

• Aluga-se casas = alugam-se casas (aqui o plural é defendido até mesmo por alguns estudiosos da língua, como Said Ali e Mattoso Camara).

Àqueles que censuram os que falam broco, grobo, cráudio, pranta, ingrês, Bagno (2001, p. 44) afirma que essa é uma tendência que o sistema aceita: vejam-se que igreja, praia, frouxo, escravo vieram do latim ecclesia, plaga, sclavu, fluxu. A noção de erro é uma avaliação negativa baseada em valor social atribuído ao falante, a seu poder aquisitivo, a sua escolarização, origem geográfica etc., e não uma avaliação linguística.

Vejamos um exemplo de uso da variedade prestigiada:

Constata-se, desde logo, a regra de que apenas por lei é possível criar contribuições para o sistema de seguridade social. É o princípio da legalidade que escora a cobrança das contribuições sociais. Lei, aqui, tem conotação estrita. Está a significar norma formal aprovada pelo Poder Legislativo, dentro de regular processo legislativo. Fora desse contexto ficam decretos, portarias, circulares etc. O princípio da legalidade, na cobrança das contribuições sociais, está estatuído na Constituição da República, em diversos dispositivos. O mesmo acontece relativamente à alteração de percentuais ou de alíquotas, particularmente quando aumentam mencionadas contribuições. A modificação da base de cálculo, em prejuízo do contribuinte, hipótese equiparada à direta majoração, submete-se à mesma vedação. A medida provisória é instrumento legal para estabelecer ou majorar contribuições sociais desde que observados os pressupostos constitucionais para sua sanção. Vale dizer, circunstância em que estão presentes relevância e urgência. Relevância tem sentido de grande valor, algo que é absolutamente conveniente. Urgência está relacionada com algo que deve ser feito imediatamente, para evitar perdas e danos. A medida provisória, em sua substância, constitui espécie de norma que absorve autêntico adiantamento dos efeitos da possível futura lei. O periculum in mora, paralelamente à relevância, é o alicerce que arrima esse anômalo poder legiferante do Presidente da República (GONÇALES, 2003a, p. 63-64).

As variedades prestigiadas, faladas ou escritas, são muitas; podem ser utilizadas em variados gêneros: literários, técnicos, administrativos etc. Em geral, os administrativos exigem um grau de monitoração mais elevado, como se pode verificar no exemplo seguinte: neles são comuns perífrases, uso de jargão, expressões técnicas, formalidades de tratamento. Deles estão ausentes expressões carregadas de espontaneidade, bem como gírias. Essa variedade aproxima-se do padrão gramatical. Vejam-se os casos dos gêneros forenses, em que é comum vocabulário próprio: em vez de assinatura, o usuário da língua dá preferência a firma; no lugar de você, o tratamento é V. Sa.

O jargão, o excesso de formalidade, as palavras estrangeiras (são comuns no direito expressões em latim), as abreviaturas contribuem para burocratizar a linguagem e afastar o leitor comum de uma decodificação rápida. Exemplo:


São Paulo, 26 de maio de 2016.

Ilmo. Sr. Diretor:

Data venia, sugerimos a V. Ex.ª, para evitar a repetição de casos da mesma natureza, seja baixado o Regimento Interno que discipline o funcionamento do referido Órgão, de acordo com o Decreto-lei nº 200/67 e o Código de Contabilidade Pública, no que couber.

Certos de havermos envidado todos os esforços no cumprimento do mandato que V. Ex.ª nos conferiu, subscrevemo-nos atenciosamente,

Fulano de Tal

Se a burocratização da linguagem for produzida com a preocupação de ser entendida por poucos (incompreensão criada voluntariamente), gera obscuridade e confunde o leitor, contrariando, pois, a função da linguagem que é a comunicação.

Nunca é demais salientar que o uso da linguagem técnica deve estar condicionado à adequação e à necessidade. A propósito, transcrevemos texto de Antonio Candido:

"Não há razão para evitar os termos técnicos quando são necessários, mas sempre que possível prefiro usar a linguagem corrente. Digamos que é mais um modo de ser do que uma decisão. Quando era moço li um livro do antropólogo inglês Evans-Pritchard que me confirmou nesta tendência. Ele dizia que a antropologia não é ciência, mas disciplina humanística, de modo que deve usar a linguagem comum. Foi o que procurei fazer quando era assistente de sociologia, à qual estendi o conceito, e foi o que sempre fiz nos estudos literários. Além disso, tenho o hábito didático de ser o mais claro possível, reconhecendo que isto pode ser fator de deficiência, pelo risco de simplificação indevida (Folha de S. Paulo, 9 nov. 2006, p. E1)."

Vejamos um texto do gênero forense, uma medida cautelar de justificação, transcrita de Gediel Claudino de Araujo Júnior (2016, p. 697-698)):

Excelentíssimo Senhor Doutor Juiz de Direito da Vara Cível da Comarca de Mogi das Cruzes, SP.

J.F. de O. brasileira, solteira, professora, portadora do RG 000.000 e do CPF 000.000.000-0, residente e domiciliada na Rua Frei Bonifácio Harink, n. 00, apartamento 00- 0, bloco 00, bairro Boturuju, nesta Cidade e Comarca, por seu Advogado firmado in fine, mandato incluso, vem perante Vossa Excelência propor ação de justificação, observando-se o procedimento previsto nos arts. 382 e 383 do Código de Processo Civil , pelos motivos de fato e de direito que passa a expor:

1. A requerente é mutuária de um apartamento da CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo), onde reside, com prestação mensal estipulada no valor de R$ 382,76 (trezentos e oitenta e dois reais, setenta e seis centavos). Tal valor foi estabelecido em função da renda da requerente somada com a renda de seu companheiro, Sr. G.A.B. de Tal, conforme demonstram documentos anexos.

2. De fato, a requerente viveu em união estável com o Sr. G. até o mês de julho de 0000, quando, por motivos de foro íntimo, foi desfeita a relação, deixando o companheiro o lar conjugal para não mais voltar. Tal fato alterou drasticamente a situação financeira familiar, já que passou então a requerente a contar somente com seu ganho mensal, insuficiente para arcar com o valor da prestação do referido imóvel.

3. Diante de tal situação, a requerente procurou os representantes da mutuante, quando foi informada que a diminuição no valor da prestação está condicionada à demonstração do término efetivo do estado de concubinato entre os mutuários, bem como à demonstração de quem ficou residindo no imóvel.

Ex positis, requer:

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Provará o que for necessário, usando de todos os meios permitidos em direito, em especial pela juntada de documentos (anexos) e oitiva de testemunhas (Rol anexo).

Dá ao pleito o valor de R$ 3.000,00 (três mil reais).

Termos em que, 
p. deferimento.

Mogi das Cruzes, 00 de setembro de 0000.

Gediel Claudino de Araujo Júnior OAB/SP 000.000


Acquaviva (1994, p. 11), por sua vez, entende que a terminologia jurídica “é a mais antiga linguagem profissional que se conhece”. E acrescenta texto de Miguel Reale:

"Cada cientista tem a sua maneira própria de expressar-se, e isto também acontece com a Jurisprudência, ou Ciência do Direito. Os juristas falam uma linguagem própria e devem ter orgulho de sua linguagem multimilenar, dignidade de que bem poucas ciências podem invocar."

Profissionais de outras áreas também fazem uso de linguagem específica, como garimpeiros, pescadores, com a diferença, porém, de que estes não fazem uso da variedade prestigiada.

É relevante ter sempre em vista o público a que nos dirigimos. Um jornalista e um publicitário experientes optam em seu trabalho por uma variedade que se adapta a seu público-alvo; em geral, valem- se da variedade “culta”, ou seja, a língua que pessoas que têm curso superior completo usam no cotidiano, e não da variedade chamada norma-padrão; não redigem textos em linguagem só compreensível pelos doutores, nem escrevem textos utilizando uma variedade linguística desprestigiada. Nesse sentido, o texto de Ceneviva a seguir transcrito tem esse cuidado com a comunicação:


Código Civil amenizará diferenças de sexo

O Código Civil de 1916, que entrou em vigor no dia 1º de janeiro de 1917, privilegiou claramente o masculino, como era uso ao seu tempo. O pai era o chefe da sociedade conjugal, a mulher casada era relativamente incapaz, a gerência e a administração dos bens era do marido e havia longuíssima enumeração dos requisitos do dote, constituído pela noiva, por seus pais ou por estranhos, a ser administrado exclusivamente pelo marido. O dote poderia compreender todos os bens da noiva na data do casamento e os que ela, no futuro, viesse a adquirir. Se tudo isso despertar a curiosidade do leitor, basta ler os artigos 278 e 309 do Código Civil ainda [de 1916]."

Algumas discriminações foram desaparecendo ao longo do tempo, como aconteceu com a chefia absoluta da sociedade conjugal, extinta em 1962. As discriminações sociais resistiram muito para desaparecer. A mulher preferia suportar os defeitos do esposo a deixá-lo, pois era ela que quase sempre pagava pelo peso social de ser, como se dizia, “largada do marido”.

O preconceito, porém, não terminava aí. A palavra homem foi tomada na lei brasileira durante grande parte do século 20 como significando a pessoa titular de direitos, enfim, o ser humano. A rigor, continuará a existir até o fim deste ano [2002], quando terminará a vigência do código de 1916, cujo artigo 2º diz: “Todo homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil.” Uma forma de anulação do casamento ainda está reservada exclusivamente ao homem. Está no parágrafo 1º do artigo 178 do velho código, que prescreve “em dez dias, contados do casamento, a ação do marido para anular o casamento contraído com mulher já deflorada”.

As mudanças que começarão a viger em 1º de janeiro próximo [2003] eliminaram expressões impróprias e discriminadoras. Assim, o artigo 1º passará a dizer que “toda pessoa é capaz de direitos e de deveres na ordem civil”. O critério para a capacidade civil é o mesmo para homens e mulheres. O artigo 21 dará a síntese do que há de mais importante para o direito da personalidade: “A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a essa norma.”

O novo artigo 1.565 dirá tudo a respeito da igualdade no casamento. O homem e a mulher serão “consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da família”. Nem mesmo subsistirá a tradicionalíssima imposição de a mulher adotar o nome de família do marido ou, no máximo, manter o nome de solteira. A contar do ano que vem, qualquer dos noivos, querendo, poderá acrescer o sobrenome do outro ao seu. Seja o dele, seja o dela.

A modernidade poderia ter vindo antes. A designação de masculino e feminino varia de idioma para idioma. Nós, brasileiros, entoamos loas à beleza romântica e prateada da Lua, doce e feminina, em contraste com o Sol vigoroso. Pois, em alemão, a Lua está no masculino (der Mond) e o Sol é a doce, mas quente donzela (die Sonne). Em francês, o erro é “a” erro, no feminino. A mensagem jurídica transmitida por esta coluna é feminina no Brasil. Se fosse na Itália, seria no masculino (il messaggio). Não é necessário ir além nos exemplos. Basta dizer que o Código Civil de 2002, mesmo não tendo atingido o ideal dos que o criticaram, eliminou muitas discriminações, acompanhando, nessa parte, um salto vigoroso na sociedade brasileira (CENEVIVA, Walter. Código Civil amenizará diferenças de sexo. Folha de S. Paulo, Cotidiano, 17 ago. 2002. p. C2).""

Classificação de Bortoni-Ricardo



Português forense : língua portuguesa para curso de direito / João Bosco Medeiros, Carolina Tomasi. – 8. ed. – São Paulo: Atlas, 2016, p. 29-30:

"Outra classificação de variedades linguísticas é de Stella Maris Bortoni-Ricardo, que vê a diversidade do português brasileiro distribuída em três continua: 1.Continuum rural-urbano. 2.Continuum de oralidade e letramento. 3.Continuum de monitoração estilística.

Bortoni-Ricardo e Rosário Rocha (In: MARTINS; VIEIRA; TAVARES, 2014, p. 38) afirmam que o contínuo de urbanização “estende-se desde as variedades rurais geograficamente isoladas até a variedade urbana suprarregional, que passou pelos processos históricos de padronização”. Segundo as autoras citadas, nesse contínuo pode-se situar “qualquer falante em função de seus antecedentes, de sua história social e de sua rede de relacionamentos”. Em relação ao contínuo de oralidade e letramento, asseveram que o foco deixa de ser o falante para apoiar-se em práticas sociais, orais ou letradas: “consideram-se a diversidade cultural de produção e a implementação dessas práticas. Considerando o contínuo de monitoração estilística, alegam que por ele “podemos aferir a dimensão sociocognitiva   do processo interacional, em particular o grau de atenção e de planejamento que o falante confere à situação de fala”. O grau de planejamento relaciona-se com: acomodação do falante ao interlocutor, apoio no contexto para a produção dos enunciados, complexidade cognitiva que a produção linguística envolve e familiaridade do falante com o objeto da comunicação.

Esses contínuos permitem reconhecer as características das variedades menos prestigiadas às mais prestigiadas. Por exemplo: considerando o contínuo de urbanização, verifica-se que os usuários da língua da zona rural apresentam características de traços fonéticos/fonológicos, como a ausência da palatal lateral [λ]:velho dizem véiu, filho dizem fiiu (ou em transcrição fonética: [vɛyyw], [fiyu]. O que se verifica aí é a existência de um traço descontínuo, estigmatizado (na seção 6.4, tratamos do conceito de traços graduais e traços descontínuos).

Considerando variáveis graduais e descontínuas no português do Brasil, salientam Bortoni-Ricardo e Rocha (In: MARTINS; VIEIR; TAVARES, 2014, p. 41):

1. Tendência à redução das palavras proparoxítonas: “xícara” > “xicra” (variável gradual)’; “bêbado”> “bebu”.

2. Supressão do /S/, morfema de plural, nos casos de redundância de marca: os livros = os livro; essa tendência é maior entre os falantes da zona rural e “no repertório dos falantes não escolarizados do que nas variedades urbanas, em eventos de letramento” (p. 42).

3. Monotongação de ditongos decrescentes “outro” > “otro”, “peixe” > “pexe” (traço gradual: “alguns ditongos em certos ambientes linguísticos são quase categoricamente reduzidos até em estilos formais da língua padrão urbana”, p. 42); (4) o apagamento de /S/ da primeira pessoa do plural de verbos [-mos] é um traço que parece ser gradual: “fazemus” > “fazemu>.

4. Nos advérbios e nomes terminados em /S/ (um traço descontínuo característicos do polo rural e periferia das grandes cidades, as chamadas áreas rurbanas), temos: “ônibus” > “ônibu”, “menos” > “meno”.

Borgoni-Ricardo e Rocha consideram no polo rural do contínuo e áreas rurbanas:

1. Neutralização das líquidas /l/ e /r/: “almoço” > “armoço”, “bloco” > “broco”.

2. Vocalização da lateral palatal /λ/: para joelho temos as seguintes realizações fonéticas: [ʒu'ey] > [ʒu'ejy] > [ʒu'ejjy] > [ʒuej].

3. Mudanças esporádicas das vogais: “direito” > “dereito”; “raiva” > “reiva”;

4. Prótese de um /a/ em palavras iniciadas com consonante, como em: “lembrar” > “alembrar”.

5. Supressão de um fonema ou de uma sílaba (aférese) no início de uma palavra: “espera” > “pera”; “José” > “Zé”; “você” > “ocê”, “cê”; “aguentar” > “guentar”;

6. Nasalização de vogais em início de sílabas: “cozinha” > “conzinha”.

7. Metátese do /r/ e, mais raramente do /s/: “preocupa” > “percrupa”, “porquê” > “pruquê”, “satisfeito” > sastifeito”.

A esses fenômenos, as autoras ainda lembram que devem ser acrescidos os casos de hipercorreção, como “privilégio” > “previlejo”, “bandejão” > “bandeijão”

No contínuo oralidade-letramento, é possível verificar em textos escritos, dependendo de quem o escreva, a presença de marcas da oralidade (suponhamos: uma pessoa de pouco domínio das convenções ortográficas pode escrever pexe, amexa etc.).

No contínuo de monitoração estilística, pode-se observar se um texto seguiu ou não determinadas formalidades, ou condições de produção, como: contexto enunciativo, intencionalidade, interlocutores. Um estilo mais monitorado tende a aproximar-se do extremo direito do contínuo de urbanização, entrecruzando-se com o extremo direito do contínuo de oralidade-letramento.

Para Cyranka, em “O contínuo rural-urbano na pedagogia da variação linguística”, a variedade “culta” é resultado do “entrecruzamento no extremo direito desses três contínuos”."

Classificação de Castilho

Português forense : língua portuguesa para curso de direito / João Bosco Medeiros, Carolina Tomasi.  8. ed. – São Paulo: Atlas, 2016, p. 26-29:



"No estudo do variacionismo, Castilho (2010, p. 87) parte de Spir, para quem a variação linguística leva à mudança: havendo duas ou mais formas em competição, uma acabará por vencer a outra e ocorrerá a mudança na língua. E foi com base em tal afirmação que William Labov elaborou a teoria da variação e mudança.

Qualquer que seja a comunidade, há sempre uma variedade social que goza de maior prestígio. Essa norma recebe o nome de norma-padrão. Para Castilho (p. 90), três são os tipos de norma: a norma objetiva (seria o padrão real no uso da língua, o uso linguístico concreto praticado pela classe social que goza de prestígio); a norma subjetiva (que seria o padrão idealizado; uso que se espera que as pessoas realizem em determinadas situações) e a norma pedagógica (que seria o padrão escolar, uma mistura de realismo com idealismo em relações aos fenômenos linguísticos).

Por obedecerem a uma sistematicidade e a uma regularidade (norma), a variação e a mudança, no entanto, não impedem a intercompreensão.

Considerando a discriminação comum em nossa sociedade com relação a pessoas que praticam variedades estigmatizadas, Castilho (1978, p. 33, 34) afirma que

uma série de desinteligências tem assinalado em nossos meios a compreensão do que seja a norma prescritiva. […] Na verdade, não há português errado, e sim modalidades de prestígio e modalidades desprestigiadas, cada qual correspondendo ao meio em que se acha o falante.

Há certas causas que desencadearam preconceitos linguísticos, principalmente o desprestígio da variedade não monitorada. Uma de tais causas é a anterioridade da gramática normativa em relação à Linguística:

A Gramática Normativa é uma disciplina que antecedeu largamente a Linguística. Ela se fundamentava em critérios inconsistentes, pois misturava argumentos propriamente linguísticos a argumentos de natureza estética, política e historicista. É singular a resistência dessas ideias tradicionalistas, as quais atravessam as idades como verdades sólidas, evidentes por si sós (CASTILHO, 1978, p. 36).

Critérios extralinguísticos atribuem à gramática normativa adjetivos como “bela”, “elegante”, a língua da classe “elevada”, “clássica” etc. O que ocorre, entretanto, é a necessidade de entendermos o que é diglossia. Castilho (1978, p. 41) afirma:

Trata-se de duas variedades da mesma língua que escolhemos alternativamente, tendo em vista a situação em que nos encontramos. Difere portanto do bilinguismo, hipótese em que duas línguas são disponíveis, e a escolha de cada qual depende da que é falada pelo interlocutor. Se o professor, que por sua formação domina a língua culta, vai ter alunos falantes de uma modalidade desprestigiada, entre ele e sua classe vai instalar-se uma situação de diglossia.

Não há, por exemplo, diglossia somente entre o professor e o aluno, mas também entre o advogado e a pessoa que ele defende, o juiz e a vítima, caso esta seja de uma classe desprestigiada.

Se a variação linguística ocorre entre períodos de tempo, recebe o nome de diacrônica; se ocorre em espaços geográficos diversos, recebe o nome de variação diatópica, frequentemente conhecida pelo nome dedialeto. Borba (1976, p. 63) ensina que um dialeto apresenta “desvio em todos os planos da língua: fônico, gramatical e vocabular”. Para Jota (1981, p. 104), o dialeto caracteriza uma “variedade regional de uma língua”. Ensina ainda que um dialeto2 pode constituir nova língua e que, “modernamente, se conceitua dialeto como um conjunto de isoglossas”.

Para Castilho (2010, p. 198, 204-209, 211-213, 223), as variedades linguísticas do português brasileiro organizam-se segundo os seguintes eixos:

1. Variação geográfica: compreende variações regionais. Indivíduos de diferentes regiões tendem a apresentar diversidade no uso da língua, particularmente com relação à realização fonética, escolhas morfológicas (por exemplo, uso de tu ou de você), realização ou não de plurais (“os meninos”, “os menino”), conjugações verbais: “você pode”, “tu podes”, “tu pode”, “a gente pode”), uso de lhe como objeto direto (“não lhe vejo há muito tempo”), uso do pronome ele como objeto direto (“olhe ele aí”), uso de vocabulário e expressões idiomáticas.

2. Variação sociocultural: originada por idade, sexo, profissão, nível de estudo, classe social. Pessoas altamente escolarizadas fazem uso da variedade “culta”, mais prestigiada, aprendida na escola; já as pessoas da área rural ou que praticam a variedade rurbana (mistura de rural com urbano) praticam uma variedade estigmatizada, mas é de lembrar que os colonos portugueses introduziram no Brasil tanto a modalidade prestigiada quanto a não prestigiada; predominaram “os falantes do português popular” (CASTILHO, 2010, p. 204). Seriam exemplos das variedades não prestigiadas para Castilho: ditongação das vogais tônicas seguidas de sibilantes: mêis (mês), luiz (luz); perda da vogal átona inicial: marelo (amarelo); nasalização das átonas iniciais: indentidade (identidade), inzame (exame); queda das vogais átonas pós-tônicas nas proparoxítonas: oclos (óculos), arvre (árvore), cosca (cócega); monotongação: pexe (peixe), bejo (beijo);ditongação: bandeija (bandeja); perda da nasalidade: viági (viagem), os homi (os homens), reciclági (reciclagem); monotongação de ditongos crescentes: ciença (ciência) negoço (negócio). Em relação às consoantes, Castilho (2010, p. 206) relaciona: troca do [l] pelo [r]: marvado (malvado), pranta (planta);iodização da palatal lh: veyu (velho), o’reya (orelha); perda da consoante [d] quando precedida de vogal nasal: andano (andando). Morfologicamente, teríamos as seguintes realizações: perda do s final indicativo de plural, que passa a ser marcado pelo artigo: as pessoa (as pessoas); utilização do advérbio mais nos comparativos de superioridade: mais mió, (melhor), mais pió (pior); alteração no quadro dos pronomes pessoais: uso de você no lugar de tu em quase todo o País; substituição de nós por a gente; o se reflexivo deixa de ser exclusivo da terceira pessoa: eu se esqueci, nós não se falemo mais (nós não nos falamos mais);substituição de o por lhe como objeto direto: não lhe ouvi direito (não o ouvi direito); em geral esse lhe é realizado na língua falada como lê ou li.

Em relação à variedade “culta”, prevalecem: uso de tu nas regiões Norte e Sul do Brasil; no Rio de Janeiro, é comum o uso de tu, mas com o verbo sem s: tu sabe; também na variedade “culta” se pode observar o uso de a gente em lugar de nós; o reflexivo se mantém seu traço de 3.ª pessoa gramatical: ela se maquilou rapidamente; é comum a ausência do pronome: eu [me] casei ano passado; eu [me] formei mês passado); na língua “culta” falada é frequente a troca do pronome lhe por pra ele, pra ela: falei pra ela não vir; uso de lhe no lugar de te: vou lhe contar uma coisa. A redução dos pronomes possessivos a meu, seu, dele é comum tanta na variedade prestigiada quanto na não prestigiada. Raramente, ocorre teu: isso não é da tua conta. Deixa de haver distinção entre os pronomes demonstrativos entre este e esse tanto na variedade dita “culta” quanto na estigmatizada. O pronome cujo deixa de existir tanto na fala “culta” quanto na estigmatizada. Na morfologia verbal, ambas as variedades apresentam diferenças: fizemu (fizemos), falemu (falamos). Castilho (2010, p. 208) lembra que, por hipercorreção, pode-se ouvir: a gente falamos, na variedade “culta” não se encontra essa forma. Em relação à sintaxe, na variedade estigmatizada encontram-se: as pessoas fala (as pessoas falam). Já a omissão do objeto direto é fato comum tanto à variedade estigmatizada quanto à variedade prestigiada: você estudou a lição? Eu estudei. Também é comum em ambas as variedades o uso de ele como objeto direto: eu vi ele, bem como, em algumas regiões, o uso de lhe: como objeto direto: eu lhe vi. O uso de ter por haver é fenômeno comum a ambas as variedades, tanto a “culta” quanto a estigmatizada:hoje não tem almoço, só lanche. Em relação ao uso do pronome relativo, há preferência em ambas as variedades pela relativa cortadora (sem a preposição): esse é o livro que eu gosto (esse é o livro de que eu gosto), “Mercedes-Benz: a marca que todo mundo confia!” (slogan de propaganda de uma montadora de automóveis) (pela gramática tradicional, teríamos: Mercedes-Benz: a marca em que todo mundo confia!). Na variedade estigmatizada, também é comum a relativa copiadora: esse é um doce que eu gosto muito dele. A relativa padrão, que raramente é usada na fala “culta”, pode aparecer em textos escritos altamente monitorados: os livros de que dispomos são apenas de Direito Tributário.

3. Variação individual. Para Castilho (2010, p. 211), “a língua produzida segundo esse eixo é denominada registro”; nessa variedade, podem-se distinguir o português brasileiro mais espontâneo e o português mais refletido. Bagno prefere as expressões mais monitorado e menos monitorado. Podemos falar mais à vontade entre pessoas do convívio comum e com mais cuidado com relação a pessoas que não são de nossa intimidade. Todas as pessoas, sejam praticantes da variedade estigmatizada, seja da variedade prestigiada, adaptam sua fala, conforme a situação e o ouvinte. Em um e-mail ou um WhatsApp entre amigos, é mais comum o uso de uma variedade menos preocupada com a norma- padrão; se falamos com uma autoridade ou escrevemos para ela, é possível que nos valhamos de uma variedade mais preocupada com a gramática.

4. Variação de canal. Varia nossa fala, conforme o canal que utilizamos. Ao telefone, usamos uma variedade diferente daquela que usamos se o interlocutor estivesse à nossa frente. É diferente a variedade que utilizamos em um torpedo ou WhatsApp daquela de que nos valemos em uma petição, por exemplo. Levamos em consideração também o interlocutor, uma vez que a construção dos enunciados depende da relação dialógica que com ele estabelecemos. Dentro ainda dessa variedade, é de considerar a língua escrita e a língua falada (variação diamésica). Finalmente, é de lembrar que a língua falada e a língua escrita conhecem variadas situações: há aquelas mais tensas e aquelas menos tensas; umas exigem mais monitoração, outras, menos. Uma conversa com amigos funciona com uma variedade, uma fala em uma conferência exige outra variedade. Um bilhete escrito para compras em casa pede uma variedade; um ensaio ou um artigo científico pedem outra variedade.

5. Variação temática: diz respeito ao modo como tratamos um assunto. Se discorremos sobre um assunto do nosso cotidiano, usamos uma variedade do português brasileiro mais espontânea; se tratamos de um assunto mais técnico, a variedade que utilizaremos será possivelmente mais elaborada. Exemplificando: uma dor de barriga é uma dor abdominal para um médico".

Classificação das variedades: a Classificação de Pretti

Português forense : língua portuguesa para curso de direito / João Bosco Medeiros, Carolina Tomasi.  8. ed.  São Paulo : Atlas, 2016, p. 25-26:



"A língua permite que os membros de uma sociedade se comuniquem e estabeleçam relações humanas. Assim, entre língua e sociedade a relação não é de mera casualidade. A vida social supõe sempre o intercâmbio comunicacional que se realiza sobretudo pela língua.

Para William Bright, segundo Preti (1977, p. 6), a Sociolinguística objetiva comparar a estrutura linguística com a estrutura social, ou seja, varia sistematicamente a estrutura linguística conforme a estrutura social a que pertencem os usuários dela. A Sociolinguística trata, portanto, da diversidade linguística condicionada por fatores sociais, como emissor, receptor, contexto.

Os habitantes de uma região (cidade, vila) desenvolvem formas de atuação linguística que lhes são peculiares e que os tornam distintos de outras regiões. E mesmo na variedade utilizada na cidade (urbana) não há uniformidade, assim como na variedade rural também não há apenas uma norma. Assim, são várias as variedades urbanas e várias as rurais.

Segundo Carvalho (1967, v. 1, p. 297), a diversidade provém ou de fator de ordem geográfica (ou local), ou de ordem social (ou cultural). Não se resume, pois, a diversidade a fatores regionais, pois a variedade pode ocorrer até mesmo dentro de uma mesma região ou localidade. Ela pode apoiar-se também em elementos sociais. O homem aprende a falar no meio familiar e social em que vive; esse ambiente é caracterizado por normas e costumes linguísticos diferentes daqueles que regem pessoas de outros ambientes.

Enfim, a diversidade ou uniformidade de uma língua está condicionada por fatores extralinguísticos. A diversidade linguística, no entanto, não apenas advém de um agrupamento geográfico para outro ou de um indivíduo para outro (variante sociocultural), mas também pode nascer do comportamento linguístico de um mesmo indivíduo. Este não utiliza a mesma variedade em todas as suas manifestações linguísticas: em conversa com amigos poderá utilizar uma variedade (prestigiada ou não prestigiada, conforme o efeito de sentido que deseja produzir) e outra em sua atividade profissional. Por exemplo, usar um vocabulário requintado, bem como utilizar expressões como V. Sa., V. Exa., ou estruturas sintáticas altamente elaboradas, para chamar a atenção ou provocar riso. Assim, as variedades contextuais dependem das circunstâncias em que ocorre a comunicação. Um mesmo falante pode valer-se de diversas variedades linguísticas, dependendo da situação. As variações quanto ao uso da linguagem pelo mesmo falante, determinadas pela diversidade de situação, recebem o nome de REGISTRO, ou níveis de fala. Pode-se dizer que todo ato de fala tem um estilo próprio. Para Carvalho (1967, v. 1, p. 302):

Tais variações observadas de momento para momento na atividade linguística de um único sujeito devem interpretar-se como o resultado da adequação que o mesmo realiza das formas que constituem o inventário da sua técnica de falar às finalidades específicas, isto é, à satisfação das necessidades cognitivas e manifestativas próprias de cada um dos seus atos verbais, das necessidades que momentaneamente os condicionam ou determinam.

Classificação de Pretti

As variedades linguísticas em uso no Brasil têm sido objeto de variadas classificações. Vejamos primeiramente a de Preti (2000, p. 39), que admite um nível intermediário entre o padrão e o não padrão:

Níveis de fala:
1) Formal (situações de formalidade; predomínio da linguagem "culta";                 comportamento linguístico mais refletido, mais tenso; vocabulário técnico etc).
2) Comum
3) Coloquial (situações familiares ou de menor formalidade; predomínio da linguagem popular; comportamento linguístico mais distenso; gírias; linguagem afetiva, expressões obscenas etc).

Pretti (2000, p. 30) salienta que os limites entre os níveis de linguagem são precários, “havendo, constantemente, a superposição dos dialetos, a contínua troca de um pelo outro”".

Variedades sociais

 

Português forense : língua portuguesa para curso de direito / João Bosco Medeiros, Carolina Tomasi. – 8. ed. – São Paulo: Atlas, 2016, p. 20-25:


"No estudo da variação sociolinguística, os linguistas observam a existência de variedades sociais a que atribuem o adjetivo cultas. A variedade “culta” pode ser assim definida: é aquela que ocorre em usos da língua de forma mais monitorada, que são realizados por segmentos urbanos, que estão no meio para cima na hierarquia econômica e com amplo acesso aos bens culturais, particularmente a educação formal, e à cultura escrita.

Trata-se de uma variedade que é recorrente na expressão linguística desses segmentos sociais, em situações de maior monitoração. Por isso, recorre-se muitas vezes à expressão norma culta real. Essas variedades sociais, no entanto, não são homogêneas (é de lembrar que não há uma variedade “culta”, mas várias), embora apresentem traços comuns, difundidos quer pela televisão, rádio, jornais impressos, bem como pela escolarização de longo alcance.

A variedade “culta” falada difere da variedade “culta” escrita; a escrita é sempre mais conservadora que a fala, ainda que se possa verificar na escrita a presença de estruturas provenientes da fala “culta”.

Com base nesses conceitos, salienta-se então que, como as variedades “cultas” são manifestações do uso normal (no sentido de regular, comum, corriqueiro) da língua,

a norma-padrão quando existe em determinada sociedade é um constructo  idealizado  (não  é  um “dialeto” ou  um conjunto de “dialetos”, como o é a norma culta, mas uma codificação taxonômica, de formas tomadas como um modelo linguístico ideal) (FARACO, 2009, p. 172).

A fixação de um padrão é resultado de um projeto político que objetiva impor uniformidade

onde a heterogeneidade é sentida como negativa (como “ameaçadora de uma certa ordem”). Foi esse o caso do Brasil no século XIX em que certa elite letrada, diante das variedades populares (em particular do que se  veio  a  chamar pejorativamente de “pretoguês”) e face a um complexo jogo ideológico (em boa parte assentado em seu projeto de construir um país branco e europeizado) trabalhou pela fixação de uma norma-padrão (p. 172).

Foi, para o linguista, o desejo de construir uma sociedade branca e europeizada que levou a elite a renegar as características linguísticas do País. Inicialmente, impedindo, no século XVIII, o uso das línguas indígenas e da língua geral e, posteriormente, na segunda metade do século XX, impondo à sociedade uma norma-padrão artificial que atormenta os brasileiros.

Embora mostre uma relativa unidade linguística, o Brasil tem dificuldade de reconhecer sua cara linguística: não admitimos que somos um país multilíngue, pois há centenas de línguas indígenas e dezenas de línguas de imigração, que são minoritárias, mas significativas para nosso patrimônio cultural. Além disso, o que se observa no português falado pela maioria dos brasileiros é que se trata de uma língua não uniforme, mas diversificada tanto no espaço geográfico quanto no espaço social. Essa diversidade não constitui problema, mas uma riqueza cultural de que temos de nos orgulhar, e não de nos envergonhar: “o problema está nas formas como lidamos com essa diversidade […]. O problema está nas imagens saturadas de valores negativos que temos de nós como falantes” (FARACO, 2009, p. 181).

A norma-padrão é uma norma distante das variedades “cultas” praticadas no Brasil. Em seu nome, têm-se praticado uma violência simbólica e uma discriminação sociocultural. Diante desses fatos, os linguistas entendem que não há por que ocupar-se de uma norma que não é utilizada e que é preciso defender o acesso escolar às variedades “cultas”. Defendem que à norma-padrão sejam incorporados, em gramáticas e dicionários, os fenômenos característicos das variedades “cultas”, ou seja, é necessário que a norma-padrão seja um reflexo da norma “culta” praticada no Brasil. Há algum sentido, já entrado o século XXI, em continuarmos nos ocupando da norma-padrão, visto não haver consenso sobre a expressão falada padrão? Temos mesmo necessidade de fixar uma norma-padrão brasileira? A diversidade linguística nacional põe algum risco à unidade das variedades “cultas” faladas? Evidentemente, a essas perguntas retóricas cabe uma resposta: não.Conclui Faraco (2009, p. 174):

Diante desses fatos, talvez possamos mesmo abrir mão de projetos padronizadores, direcionando nossas energias para o que efetivamente interessa: de um lado, a descrição e a difusão das variedades cultas faladas e escritas; e, de outro, o combate sistemático aos preceitos da norma curta que, em nome de uma norma-padrão artificialmente fixada, ainda circulam entre nós quer na desqualificação da língua portuguesa do Brasil, quer na desqualificação dos seus falantes.

Para Zilles, no prefácio à obra de Faraco (2009, p. 15),

sofremos, de fato, uma esquizofrenia linguística, pois amargamos uma dura dissociação entre a ação (o modo como falamos) e o pensamento (o modo como representamos o modo como falamos). Essa dissociação, contudo, não é endógena como a patologia cujo nome tomamos emprestado acima, pois seu arcabouço é sócio-histórico, e,  portanto,  passível  de  ser conhecido, explicado e quiçá modificado. Mas é preciso querer fazê-lo. É preciso vontade política.

Segundo Zilles, ainda, a norma linguística modelar recebe diversas denominações: norma culta, norma-padrão, norma gramatical, gramática, língua culta, língua-padrão, língua certa, língua cuidada, língua literária, entre tantas outras.

Bagno (In: ZILLES; FARACO, 2015, p. 193), examinando a falsa sinonímia norma-padrão = norma culta, fez levantamento dos autores de livros didáticos e encontrou as seguintes expressões: língua culta, língua formal, língua oficial, língua-padrão, linguagem formal, modalidade culta, norma culta, norma-padrão, padrão culto, padrão formal, português-padrão, pronúncia-padrão, uso culto, uso formal, variação-padrão, variante culta, variante-padrão, variedade culta, variedade formal, variedade-padrão, variedades de prestígio.

Até mesmo no ENEM, Bagno (p. 197-198) identificou imprecisão terminológica em relação à “norma culta”, que é tratada como modalidade culta, modalidade culta escrita, modalidade-padrão, norma culta escrita, norma-padrão. E, adiante (p. 210), volta a insistir que, quando se usa a terminologia norma culta nas provas do ENEM,

o que está em jogo é a variação social da língua, isto é, as diferenças que a  língua  apresenta  de  acordo  com variáveis sociais como classe socioeconômica, grau de escolarização, idade, sexo, ambiente rural ou urbano etc. Quando se usa, por outro lado, a escala de formalidade (ou de monitoramento) para avaliar determinado uso da língua, o que está em jogo é a variação estilística.

Ora, a falta de precisão com relação à nomenclatura revela que o que está no centro das discussões é mal compreendido e mal avaliado pela sociedade brasileira. Faraco (2009, p. 121), com base nas acusações de puristas que viam erros nos clássicos, “sempre que seus usos desmentiam as regras agora inventadas” (p. 120), afirma que

é certamente esse vício de origem a causa principal do desenvolvimento da norma curta entre nós – essa coleção de preceitos categóricos que se autojustificam, que recusam a norma real, que desmerecem o trabalho dos escritores,  dos  bons dicionaristas e gramáticos e que excluem qualquer diversificação de suas fontes.

Essas críticas à postura purista e conservadora no uso da língua, no entanto, não devem ser entendidas como uma postura relativista no estudo do português brasileiro. Em relação ao ensino da língua materna, Bagno (In: ZILLES; FARACO, 2015, p. 200) endossa o pensamento de Magda Soares, para quem as camadas populares têm o direito “de apropriar-se do dialeto de prestígio”. O objetivo desse tipo de ensino seria

levar os alunos pertencentes a essas camadas a dominá-lo, não para que se adaptem às exigências de uma  sociedade que divide e discrimina, mas para que adquiram um instrumento fundamental para a participação política e a luta contra as desigualdades sociais.

Não se trata, pois, de abandonar o ensino exclusivo de uma norma, mas de “assumir a responsabilidade de letrar os aprendizes, isto é, inserir os cidadãos na cultura eminentemente letrada que domina a sociedade em que vivem, familiarizando-os com os mais diversos tipos e gêneros discursivos, falados e escritos, que circulam na sociedade” (BAGNO In: ZILLES; FARACO, 2015, p. 201).

A questão da língua no Brasil, para os linguistas, não é apenas linguística, mas, antes de tudo, política, no sentido de que a variedade prestigiada é que deveria ser ensinada na escola, e não a norma-padrão, variedade abstrata, que não é falada na sociedade brasileira. A relevância do tema pode ser observada sobretudo quando se depara com efeitos deletérios que o preconceito linguístico produz, principalmente a intolerância linguística, notável em expressões que diminuem pessoas que dominam outras variedades linguísticas, as não prestigiadas socialmente: ignorante, estúpido, desqualificado, idiota e outras que aproximam seres humanos do mundo animal.

Toda língua é heterogênea, isto é, é constituída por um conjunto de variedades; a realidade das línguas não é a unidade homogênea. Segundo Castilho (2010, p. 197), as línguas, além de heterogêneas, são voltadas para a mudança. Não há, pois, senão variedades linguísticas e não, propriamente, uma língua superior às variedades, visto que são estas que lhe dão sustentação, que a fazem ser uma língua; nem há língua de um lado e variedades de outro; língua é o conjunto das variedades.

Faraco define então língua não como entidade linguística, mas como entidade cultural e política, ou seja, critérios puramente linguísticos não são adequados para definir língua, pois ela comporta tanto a dimensão política quanto a cultural.

Cada variedade segue uma norma. Ora, como toda norma apresenta uma organização estrutural, não há consistência em afirmar a existência de erro em língua. Isso significa que toda variedade possui uma gramática. Falar em erro seria aplicar a organização estrutural de uma variedade a outra variedade. E é por querer aplicar a estrutura da variedade prestigiada à variedade não prestigiada (estigmatizada) que são comuns, na sociedade brasileira, juízos depreciativos sobre esta última: identifica-se erro quando se trata tão somente de diversidade. E, em geral, apenas são percebidas como erro as formas não usadas pela classe que desfruta de prestígio.

Toda realidade linguística organiza formas heterogêneas, híbridas e mutantes. Essa a razão por que Faraco utiliza a expressão norma curta para referir-se aos que se valem de uma norma supostamente “culta” para discriminar outras variedades linguísticas. A norma culta é uma norma estreita, particularmente porque desconsidera o que já está registrado em dicionários e até em determinadas gramáticas. Esse é o caso, por exemplo, da regência do verbo assistir como transitivo direto, que alguns puristas teimam em considerar como errônea (“ele assistiu o programa Roda Viva”), mas que já é usada corriqueiramente por pessoas de educação superior e de status social de prestígio; a despeito do desagrado dos puristas, essa forma já está registrada em dicionário: “na literatura contemporânea, a tendência, ao que parece, é para o complemento direto” (LUFT, 1999, p. 79). Cunha (1985, p. 508) também é assertivo em relação a tal uso:

Na linguagem coloquial brasileira, o verbo constrói-se, em tal acepção [“estar presente, presenciar”], de preferência com objeto direto (cf.: assistir o jogo, um filme), e escritores modernos têm dado acolhida à regência gramaticalmente condenada.

Norma culta, portanto, porque nela cabem apenas condenações a formas que indistintamente os brasileiros usam no seu dia a dia; norma em que não cabe nada além de preconceitos linguísticos, tachando de ignorantes os que se utilizam de variedades menos prestigiadas.

O uso da expressão norma culta, ultrapassando os muros da universidade, tornou-se comum no discurso da mídia, mas perdeu a precisão semântica. E mesmo no discurso universitário a expressão apresentava imprecisão, confundindo-se com norma-padrão, que é outro conceito distinto. Norma culta também é identificada com norma gramatical, uma norma que se distancia e às vezes conflita com o uso culto efetivo que ocorre no Brasil. Nos estudos linguísticos, considera-se culto o uso da língua praticado por pessoas de escolarização superior (os que fizeram universidade), têm acesso a bens culturais, como jornais, livros, teatro, cinema, nasceram, cresceram e sempre viveram em ambiente urbano, como já afirmamos.

Tradicionalmente, quando se fala em estudar ou ensinar português, vem à mente o ensino da gramática; daí a sinonímia, em nossa sociedade, entre ensinar gramática e ensinar português. E ensinar gramática também nunca esteve livre de distorções: entendia-se ora que se tratava de ensinar nomenclatura, conceitos, classificações, ora ensinar usos que os gramáticos entendiam ser o “correto”.

A escola tradicional negava a variação linguística em seu ensino. Ela entendia que variação é equivalente a erro e lhe caberia corrigir os desvios. Ora, embora o tema da variação tenha sido ultimamente objeto do discurso pedagógico, ainda não conseguimos “construir uma pedagogia adequada a essa área”.

Em vez da preocupação com projetos padronizadores do português brasileiro, poderíamos dedicar esforços no sentido da descrição e difusão das “variedades cultas faladas e escritas” e combater sistematicamente os “preceitos da norma curta que, em nome de uma norma-padrão artificialmente fixada, ainda circulam entre nós quer na desqualificação da língua portuguesa do Brasil, quer na desqualificação dos seus falantes” (FARACO, 2009, p. 174). E, citando Lucchesi, afirma que o combate é de natureza política:

o estigma ainda recai pesadamente sobre as variantes mais características da norma popular, fortalecendo-se a cada dia […] um preconceito que, sem fundamento linguístico, nada mais é do que a crua manifestação da discriminação econômica e da ideologia da exclusão social (p. 174). 

Um dos projetos padronizadores é o da pronúncia brasileira, que ocupou a intelectualidade nas décadas de 1930-1950, mas foi abandonado. Entendia-se que a pronúncia carioca seria a padrão para o teatro, o canto, os meios de comunicação social. Conclui Faraco: “O Brasil passa muito bem sem uma norma-padrão para a pronúncia: ela não se mostra nem necessária, nem conveniente” (p. 175). Em relação à escrita, afirma a necessidade de uma grafia-padrão, a do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras. Todavia, com relação à regulamentação dos fenômenos sintáticos, com objetivo de padronização, questiona:“não basta deixar que o normal seja o normativo para a fala e para a escrita?” (p. 175).

Tudo isso parece de difícil assimilação, porque ainda nos assombra a norma-padrão escrita fixada no século XIX. Em vez de nos ocuparmos com uma gramática que não corresponde aos nossos usos linguísticos, precisamos é nos familiarizar com diferentes gêneros discursivos, e não apenas com textos literários; o domínio da leitura e a produção textual de outros tipos de textos são igualmente necessários; entre eles, podemos citar: os textos jornalísticos, os de divulgação científica, os textos argumentativos, a propaganda, os textos administrativos (oficiais, comerciais) e técnicos. Já não cabe à escola ocupar-se do gênero redação escolar, ou seja, aquela produção artificial, sem respaldo social e apenas com a preocupação com notas escolares. A produção de textos precisa ter funcionalidade, atender a efetivos eventos comunicativos.

Há certa ilusão na escola tradicional de que a correção de regência verbal e nominal, concordância verbal e nominal, eliminação de mistura pronominal, colocação pronominal à moda portuguesa seja suficiente para que o aprendiz tenha acesso à expressão “culta” da língua e a seu domínio. Se pretendemos firmar o uso da variedade prestigiada, precisamos despertar a consciência para a variação linguística. Só assim se perceberá a distância entre as variedades e se poderá vir a usar aquela que funciona melhor em determinadas situações.

A expressão norma culta passou a designar os preceitos da tradição conservadora e pseudopurista e, prosopopeicamente, ganhou vida de ser humano: “a norma culta não aceita tal uso”; “a norma culta rejeita esse uso”; “a norma culta não admite”; “a norma culta condena”; “a norma culta proíbe”. Faraco (2009,

p. 25) conclui:

Basta, em nome desse ente etéreo – a Sra. Dona Norma Culta – asseverar categoricamente o que se imagina ser o certo e o errado, como se houvesse indiscutível consenso sobre o assunto e fossem claras e precisas as linhas divisórias entre o “condenável” e o “aceitável”, entre o que a Sra. Dona Norma Culta “aceita”, “admite”, “exige” e o que ela “condena”, “proíbe”, “não aceita”, “não admite”.

Há ainda os que adotam um discurso supostamente mais “moderno”, admitindo determinados usos, mas sempre ressalvando tratar-se de usos informais, bem como os que veem decadência e degradação em determinados usos que ocorrem no Brasil; usos que refletiriam desleixo e ignorância dos falantes. A essa postura conservadora a mídia ofereceu espaços generosos para os chamados por Bagno (2015, p. 116, 148, 164) de “comandos paragramaticais”. Também, as grandes empresas jornalísticas têm criado manuais de redação em que apresentam um conjunto de normas rígidas nem sempre seguidas por seus próprios jornalistas.

A expressão norma culta ainda se confunde com língua escrita. Embora haja gêneros em que se espera o uso de uma variedade que goza de prestígio social, não se pode afirmar que a língua escrita utiliza essa variedade. Há inúmeras situações em que utilizamos na língua escrita outras variedades não prestigiadas, como em um bilhete familiar ou entre amigos, em um e-mail entre colegas de classe, em um blog, em um chat. E que dizer de inúmeras canções que se valem de variedades até estigmatizadas, ou de textos literários que estrategicamente se valem de variedades múltiplas que dão feição estética ao texto? Lembremo-nos de que no Brasil um grande contingente de alfabetizados que são funcionais: apenas


sabem escrever o próprio nome, ou leem e escrevem com muita dificuldade, mas não são capazes de entender o que leem. Daí Faraco (2009, p. 27) afirmar que

continuamos uma sociedade perdida em confusão em matéria de língua: temos dificuldades para reconhecer nossa cara linguística, para delimitar nossa(s) norma(s) culta(s) efetiva(s) e, por consequência, para  dar referências consistentes e seguras aos falantes em geral e ao ensino de português em particular.

Em lugar da cultura linguística negativa do erro, é preciso estabelecer uma cultura linguística positiva. E, embora haja algum progresso em relação ao tema da variação, ainda predominam as preocupações com a variação geográfica, que envolve preconceito; em geral, ela ainda é vista de um ponto de vista anedótico (às vezes, brincadeiras com o r retroflexo, por exemplo, ou variações de vocabulário). No estudo da variação rural, sobejam os exemplos da fala de Chico Bento, que, como sabemos, reflete uma elaboração estereotipada da fala rural.

Em relação à variação estilística, livros didáticos que ainda insistem na inadequação de determinados usos em situações formais: por exemplo, entendem que a única variedade a ser utilizada seria a prestigiada, desconsiderando as estratégias que o locutor pode vir a utilizar para a produção de sentido. Imagine-se, por exemplo, uma pessoa, numa rodinha de amigos, utilizando um português altamente monitorado, simplesmente para provocar riso entre os companheiros. Os recursos para a variação estilística diferem de indivíduo para indivíduo, segundo seu grau de letramento. Se mais letrado, o indivíduo dispõe de mais estilos que se aproximam da norma idealizada da língua escrita formal, mais monitorada. Bagno (In: ZILLES; FARACO, 2015, p. 210) afirma ser uma falácia definir a norma culta ou norma-padrão como linguagem formal:

a (in)formalidade de uma situação não se vincula exclusivamente ao emprego (ou não) de formas gramaticais normatizadas ou de uma pronúncia “culta”: há muitos outros elementos verbais e  não  verbais que  colaboram para  conferir maior ou menor formalidade a um evento comunicativo.

Raramente tratam os livros didáticos da variação social, dos conflitos, das aproximações e distanciamentos, entre norma “culta”, aquela que as pessoas de educação superior utilizam, e as outras, pois é aí que residem os piores estigmas de nossa sociedade. E é a cultura do erro no Brasil que impede uma discussão aberta e não preconceituosa do português falado pelos brasileiros.

Mesmo os exames de avaliação do sistema escolar, como SAEB e ENEM,

são ainda muito pouco abrangentes e não saem dos dois eixos rural/urbano e formal/informal. […] Não encaram a variação como um contínuo (o que aparece é, no geral, uma concepção estanque da relação da variação com o contexto) e, por nunca chegarem à variação social, não alcançam o julgamento de atitudes estigmatizadoras (FARACO, 2009, p. 179)."



Preconceito e intolerância linguística

  Português   forense   :   língua   portuguesa   para   curso   de   direito   /   João   Bosco   Medeiros,   Carolina   Tomasi.   –   8.  ...