sexta-feira, 8 de abril de 2022

Norma

 Português forense : língua portuguesa para curso de direito / João Bosco Medeiros, Carolina Tomasi.  8. ed.  São Paulo : Atlas, 2016, p. 15-17:

"Enquanto a oposição língua/fala é de Saussure (1977), o conceito tripartite de SISTEMA/NORMA/FALA é de Coseriu (1979). Para este último autor, o falante, ao utilizar a língua (sistema) e sua fala, seleciona modelos de enunciação que são retirados da norma. Entende Faraco (2009,p. 34) que, sob o olhar estruturalista saussuriano, a norma pode ser vista como “cada um dos diferentes modos de realizar os grandes esquemas de relações do sistema”. Assim, cada norma se organiza dentro das possibilidades que lhe permite o sistema, e cada uma dessas organizações se apoia no uso corrente de um grupo de falantes socialmente definido. Dessa forma, ainda segundo Coseriu, uma norma não indica o que se pode dizer, que é tarefa do sistema, mas o que tradicionalmente se diz na comunidade.

A NORMA varia segundo a influência do tempo, espaço geográfico, classe social ou profissional, nível cultural do falante. A diversidade de normas, visto que há tantas quantos os indivíduos, não afeta a unidade da língua, que contém a soma de todas as normas (isso na concepção tradicional da existência de língua homogênea). Por isso, Camara Jr. (1975, p. 9) afirma que a língua é uma unidade, uma estrutura ideal, que apresenta “os traços básicos comuns a todas as suas variedades”.

Segundo Bechara (2015, p. 44), a norma contém tudo o que na língua não é funcional, mas que é tradicional, comum e constante, ou, em outras palavras, tudo o que se diz “assim, e não de outra maneira”. É o plano de estruturação do saber idiomático que está mais próximo das realizações concretas. O sistema e a norma de uma língua funcional refletem a sua estrutura.

Mattoso Camara Jr., em Dicionário de linguística e gramática (1978a, p. 177), afirma que norma é “conjunto de hábitos linguísticos vigentes no lugar ou na classe social mais prestigiosa do país”.

Faraco (2009, p. 35) não vê na norma essa restrição de Mattoso Camara, uma vez que entende norma como determinado conjunto de fenômenos linguísticos (fonológicos, morfológicos, sintáticos e lexicais) que são correntes, costumeiros, habituais numa dada [observe que não diz “na classe social mais prestigiosa do país”] comunidade de fala. Norma nesse sentido se identifica com normalidade, ou seja, com o que é corriqueiro, usual, habitual, recorrente (“normal”) numa certa comunidade de fala [destaque nosso].

Em nota de rodapé da p. 35, Faraco chama a atenção para o fato de que uma norma não comporta tão somente fenômenos fixos, mas também fenômenos em variação. E, adiante, à página 37, complementa seu argumento, afirmando que uma comunidade linguística é formada por um conjunto de normas: “cada comunidade linguística tem várias normas (e não apenas uma)”. E exemplifica: tia, dia conhecem em algumas comunidades brasileiras a pronúncia africada (tchia, djia); em outras, a pronúncia não africada.

Uma norma convive ao lado de outra sem nenhum problema, como é o caso do uso do pronome pessoal tuque é normalmente usado no Brasil com o verbo sem s: tu vai, tu pode. Em situações mais monitoradas, no entanto, podemos ouvir: tu vais, tu podes. Da mesma forma, temos comumente a mistura de você com teu, em algumas situações (“você não viu a mancha na tua blusa?”; em situações mais monitoradas podemos encontrar: “você não viu a mancha na sua blusa?”. Outro exemplo comum no Brasil é o uso de ter no sentido existencial: “não tem problema”, “não tem ninguém na sala”; em situações mais monitoradas (muitíssimo raramente), poderíamos ter: “não há problema”, “não há ninguém na sala”. O uso de ter nessas situações é generalizado de Norte a Sul, sem distinção de categoria social, da mesma forma como já faz parte de nosso cotidiano o uso de pega ele, veja ele, sem distinção de classe social. É comum no Jornal Nacional ouvirmos esse tipo de construção. O uso de a gente no lugar de nós também já está generalizado de Norte a Sul: “a gente pode sair da sala?”, mas também se ouve: “nós podemos sair da sala?”. Outra variação comum em nosso meio é a substituição do futuro do presente por dois verbos: “você vai estar presente na reunião amanhã?” (forma mais corriqueira que “você estará presente na reunião amanhã?”).

Enfim, paulatinamente a variedade da fala prestigiada vai provocando mudança no uso de uma norma anterior. Faraco (2009, p. 41) chama a atenção para o fato de que, qualquer que seja a norma, ela não se constitui apenas de um conjunto de formas linguísticas; ela é também “um agregado de valores socioculturais articulados com aquelas formas”. Verifique-se, por exemplo, que as normas que organizam as variedades estigmatizadas na sociedade brasileira são vistas como “introdutoras de erros linguísticos” e os falantes dessas variedades são considerados ignorantes. E, como se trata de valores, há formas que são consideradas mais erradas que outras. Quando os mais escolarizados e os que gozam de status social prestigiado usam determinadas formas, elas não são estigmatizadas; quando não usam, as formas usadas pelos menos escolarizados e colocados à margem da sociedade são vistas como erradas.

Norma é, pois, um conjunto de regras que regulam as relações linguísticas. A norma sofre afrontas ou é contrariada devido a vários fatores: alterações devidas às classes sociais diferentes, alterações devidas aos vários indivíduos que utilizam a língua.

Resumindo, norma designa os fatos de língua usuais, correntes, em uma comunidade de fala. Ela designa os fatos linguísticos que caracterizam a fala de pessoas de uma comunidade, incluindo os fenômenos em variação.

A norma pode ser coletiva ou individual. Com base no sistema coletivo, o usuário procura fazer uma adaptação individual. A norma social considera o que é comum a uma comunidade (língua) e o que é comum a uma região (dialeto).

Ainda é necessário esclarecer dois conceitos que adiante trataremos mais minuciosamente: NORMA CULTA e NORMA-PADRÃO, que têm sido vistos de forma confusa: “a expressão norma culta/comum/standard designa o conjunto de fenômenos linguísticos que ocorrem habitualmente no uso dos falantes letrados em situações mais monitoradas de fala e escrita” (FARACO, 2009, p. 71).

A NORMA CULTA é a linguagem praticada pela classe social de prestígio, que é identificada com a da chamada classe social cujos indivíduos têm escolaridade superior (graduação completa em alguma faculdade) e possuem antecedentes biográficos culturais urbanos, isto é, nasceram, cresceram e sempre viveram em ambiente urbano. Trata-se de uma variedade social que nada tem de melhor em relação às outras. Seu prestígio decorre da importância da classe social a que corresponde.

Bagno (2015, p. 157-158), discutindo a confusão entre norma culta e norma-padrão, afirma:

O dilema relativo à norma-padrão se prende ao fato de que esse termo (às vezes sob a forma enganosa e imprecisa de “norma culta”) é usado pela tradição gramatical conservadora para designar uma modalidade de língua que […] não corresponde à língua efetivamente usada pelas pessoas cultas do Brasil nos dias de hoje, mas sim um ideal linguístico inspirado no português literário de Portugal, nas opções dos grandes escritores do passado, nas regras sintáticas que mais se aproximam dos modelos da gramática latina, ou simplesmente no gosto pessoal do gramático – para Napoleão Mendes de Almeida, por exemplo, o “certo” é dizer eu odio e não EU ODEIO.

Já a expressão norma-padrão designa não propriamente uma variedade da língua, mas um constructo sócio-histórico que serve de referência para estimular um processo de uniformização. Enquanto a norma culta/comum/standard é a expressão viva de certos segmentos sociais em determinadas situações, a norma-padrão é uma codificação relativamente abstrata (FARACO, 2009, p. 73).

A norma-padrão é a norma gramatical. Não há, propriamente, falantes que a utilizam tal como ela se apresenta nos manuais, mesmo porque há divergência entre os gramáticos e, muitas vezes, o que ali se encontra não é seguido sequer pelos literatos.

Para Bagno (203, p. 43), há confusão entre a língua que falamos e a língua escrita. A própria gramática se apoia em um tipo específico de atividade linguística, a língua escrita:

de um grupo muito especial e seleto de cidadãos, os grandes estilistas da língua, que também costumam ser chamados de “os clássicos”. Inspirados nos usos que aparecem nas grandes obras literárias, sobretudo do passado, os gramáticos tentam preservar esses usos compondo com eles um modelo de língua, um padrão a ser observado por todo e qualquer falante que deseje usar a língua de maneira “correta”, “civilizada”, “elegante” etc.

Faraco (In: ZILLES; FARACO, 2015, p. 21-22), depois de afirmar que não se nega “em nenhum momento a necessidade de garantir a todos o acesso à expressão culta”, questiona o que o se deve entender por “expressão culta”:

A questão normativa emergiu com força no Brasil na segunda metade do século XIX. Surgiu como uma reação ao ideário de nossos autores românticos. Defendiam eles um projeto que desse forma literária às nossas paisagens e às nossas realidades socioculturais. Em outros termos, eles batalhavam por uma independência literária e cultural como desdobramento da independência política. […]

No século XIX, eram já bem distintos o português europeu e o português brasileiro, seja na pronúncia, seja na sintaxe, seja ainda no vocabulário. E as nossas características, quando transpostas para a língua escrita, foram, então – ao cabo de um conjunto de pesadas polêmicas –, inadequadamente classificadas como erros.

Espalhou-se entre nós, em consequência, o discurso de que nosso português é cheio de erros, de que não sabemos português, de que escrevemos mal a língua. E difundiu-se, nas últimas três décadas do século XIX, um discurso normativo que recusou as características do português culto brasileiro e defendeu a adoção e o ensino das características do português culto europeu como norma de referência."



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